Purezinha Monteiro Lobato: a construção de um perfil” por Raquel Endalécio Martins, oferece uma visão fascinante da vida de Purezinha e sua influência sobre Monteiro Lobato. Explorando correspondências e registros, a autora revela seu papel nos bastidores da história lobatiana, destacando sua contribuição intelectual e seu compromisso com a memória do escritor.
No dia 10 de setembro de 2024, Cleo Monteiro Lobato teve a honra de participar de um momento histórico e gratificante: a entrega da 1ª Medalha Monteiro Lobato do Comércio Brasileiro de Combustíveis. A medalha foi entregue ao Sr. José Roberto Tadros, presidente da Confederação Nacional do Comércio de Combustíveis e Lubrificantes, em reconhecimento por sua contribuição ao setor.
Este evento foi especialmente significativo para Cleo Monteiro Lobato, bisneta de Monteiro Lobato, pois ela teve a oportunidade de compartilhar com tantas pessoas a visão pioneira e a história de seu bisavô na luta pela independência energética brasileira. Cleo teve um papel fundamental no desenvolvimento do vídeo que narra a incrível trajetória de Monteiro Lobato e sua incansável luta pela exploração do petróleo no Brasil. Além disso, Cleo participou da criação da 1ª Medalha Monteiro Lobato, entregue durante o evento promovido pela Fecombustíveis, que homenageou tanto ela quanto seu bisavô.
Monteiro Lobato, além de ser considerado o pai da literatura infantil brasileira, foi um verdadeiro visionário no que diz respeito ao desenvolvimento do Brasil. Com uma vasta produção literária que encantou gerações, ele acreditava profundamente na importância do controle dos meios de produção energética, como o petróleo, para a soberania do país. Desde o início do século XX, Monteiro Lobato defendeu incansavelmente a exploração do petróleo, vislumbrando como essa indústria poderia gerar empregos, riqueza e um futuro próspero para todos os brasileiros. Seu espírito empreendedor e sua luta por um Brasil independente, tanto no campo cultural quanto no econômico, fizeram dele uma figura de destaque não apenas na literatura, mas também na história da indústria nacional.
Neste mesmo dia, Cleo Monteiro Lobato também recebeu uma placa de reconhecimento do presidente da Fecombustíveis, Sr. James Thorpe Neto, por sua participação na elaboração do vídeo e da medalha. Esse gesto de carinho acrescentou ainda mais significado a esse momento histórico.
Monteiro Lobato continua a ser uma inspiração para todos nós!
Escritor, já muito atacado no passado sob pretexto de veicular ideias evolucionistas e socialistas, tem mais recentemente sido acusado de racismo. Mas simplesmente banir seus textos das salas de aula e espaços de discussão é renunciar a debater uma obra prenhe de criatividade, inventividade e criticidade.
E Lobato continua “causando”…
Com mais de 70 anos já transcorridos desde a morte de seu criador, os personagens infantis de Monteiro Lobato circulam por leituras polêmicas e atuais dentro e fora da escola. Considerado um divisor de águas na produção literária para crianças, Lobato legou à posteridade textos que, em diferentes situações, suscitaram seu intenso reconhecimento tanto por parte do público leitor, quanto da crítica especializada. Da mesma forma, porém, a polêmica se tornou elemento indissociável desse reconhecimento, o que chega, junto com a ininterrupta edição de seus textos infantis, aos leitores de hoje.
Sobre seus livros para crianças, há pouco mais de uma década, em capítulo intitulado “Monteiro Lobato, um clássico para crianças”, respondíamos à questão: O que há de tão atrativo no Sítio do Picapau Amarelo? Ou, em outras palavras, por que Pedrinho, Narizinho e Emília, principalmente Emília, continuam tão presentes no imaginário infantil brasileiro? Ainda de outro modo: como Lobato fez esta mágica que, embora muitas vezes explicada nos mínimos detalhes pelos mais “maduros”, continua encantando os “menos experientes”? Indagações como essas não têm faltado aos pesquisadores e demais leitores especializados ao longo dos anos. Perguntas impossíveis de serem respondidas em um só texto ou mesmo em muitos outros trabalhos que vêm tentando, no mínimo, tangenciar as mil e uma questões instauradas pela obra de Lobato.
Um escritor publicista
A partir dos anos 1980, foram consolidados estudos sistemáticos sobre a literatura infantil e juvenil brasileira. Nesse contexto, a figura de Lobato se mostra central, trazendo como foco desses trabalhos a discussão de aspectos temáticos relevantes, como aponta Marisa Lajolo em artigo de 1988, “A figura do negro em Monteiro Lobato”, ao abordar Histórias de Tia Nastácia:
As contradições vão se acirrando ao longo do texto lobatiano, que, ao contrário de seus pares, não se limita a reproduzir, em forma de antologia asséptica, as histórias que Tia Nastácia conta. Lobato reproduz a história encenando a situação de narração e recepção, pondo, pois, em confronto o mundo da cultura negra do qual, no caso, Tia Nastácia é legítima porta-voz, e o mundo da modernidade branca, à qual dão voz tanto as crianças como a própria Dona Benta, também ela ouvinte de Tia Nastácia e também ela insatisfeita com as histórias que ouve (…).
Um artigo como esse mostra, ao leitor de hoje, que os estudos sistemáticos sobre a obra de Monteiro Lobato têm sido realizados de forma séria, sem ceder a simples opiniões ou questão de gosto. Por isso mesmo, muitos temas que ocupam o centro de polêmicas em diferentes ambientes sociais ou veículos de comunicação nunca foram desconhecidos daqueles que estudam a obra do escritor.
Assim, em texto mais recente, intitulado “Provocações à longeva Botocúndia: Monteiro Lobato e Urupês”, de 2018, publicado em número da revista Leitura em revista em que se comemorava uma efeméride literária – 70 anos sem Lobato, destacávamos a verve crítica lobatiana. Lembramos, então, que isso foi um dos aspectos que chamou a atenção de José Guilherme Merquior ao atribuir a Lobato a identidade de “publicista” – “um escritor que discute problemas de interesse público, de interesse coletivo”. Acrescenta o autor, ainda, que é esse o perfil que poderíamos relacionar a certo tipo de jornalismo engajado que “não só discute temas de evidente interesse coletivo como o faz dentro de uma linguagem que sistematicamente aspira a uma comunicação com o grande público”.
Amante de boas brigas
A exposição decorrente desta atividade, na qual Lobato via oportunidade para divulgar seus livros, levaria a uma visibilidade cotidiana ou mesmo à imagem pública de alguém que se colocava disponível ao debate, à discussão, à divergência. A partir dos jornais de sua época, Lobato lançaria questionamentos e reflexões contundentes, provocativas, na expectativa de influenciar ações em seu contexto social. Como aponta Sueli Cassal, o envolvimento de Lobato com grandes causas era movido por um desejo utópico de uma nação desenvolvida, muita próxima da situação econômica dos Estados Unidos, o que seria possível mediante a valorização do conhecimento científico.
“Não deixaria por menos uma boa briga”, poderia ser uma expressão para definir Lobato. “Boas brigas” foram as campanhas por necessidades básicas dos brasileiros, como a do saneamento, de 1918, em que acompanhou médicos sanitaristas, colocando-se a serviço da denúncia em uma séria de matérias sobre moléstias (verminoses, na maioria) que atingiam a população paulista de modo vergonhoso. Seu empenho como adido comercial nos anos 1930, para dar ferro ao Brasil, isto é, para incentivar a produção nacional, bem como sua ação tanto como publicista quanto empresário para desenvolver a exploração do petróleo, se refletiam em artigos e livros. A obra infantil não deixaria, evidentemente, de refletir essas experiências, algumas posteriores, outras concomitantes a atividades de editor, empresário, publicista.
O leitor infantil surge, então, como um destinatário de suas expectativas – aliás, como em todo texto, na obra infantil é evidente que se projeta uma ideia de leitor. Um suposto leitor neutro, raso, manipulável não estava na mira dos livros de Lobato. Ao não subestimar seu destinatário criança, o escritor convidava esse leitor infantil a pensar o mundo ao seu redor por meio de um trabalho inventivo e consciente com o texto literário. Os rompantes de contrariedade de diferentes grupos em diferentes momentos iriam atestar, ainda que de modo inusitado, a relevância daquele labor literário ao longo do tempo e das gerações.
Darwinismo e socialismo
Nos anos 1950, uma obra, em particular, se tornaria paradigmática desse tipo de abordagem polêmica e acusatória, realizando uma interpretação bibliográfica de Lobato cujo título encerra, por si só, um entendimento notoriamente avesso para com as lutas por ele travadas no campo econômico: A literatura infantil de Monteiro Lobato ou Comunismo para Crianças, do Padre Sales Brasil.
O autor projeta sobre a obra infantil temas que, de longe, estariam no centro da proposta lobatiana de formação de leitores, como é o caso da ausência de conteúdos religiosos propensos a reafirmar a identidade católica brasileira. Mais do que as ausências, o autor do estudo busca pistas em livros como A chave do tamanho, de 1942, sobre ideologias danosas à moral das crianças. É dessa forma que entende a miniaturização dos personagens como a extinção de classes sociais, isto é, em A chave do tamanho haveria uma propaganda dos benefícios de uma sociedade comunista: “é o seguinte: quando todos os homens chegarem ao mesmo tamanho (nivelamento das classes sociais), então não haverá sobre a terra nem injustiça nem certos preconceitos”.
Ao lembrarmos do texto do padre Sales Brasil, percebemos que a fantasia, a inteligência e a criticidade são ignoradas como excepcionais qualidades da obra de Lobato e rebaixadas segundo uma inegável visão obscurantista. Em outro trecho, outra denúncia: “Trata-se, evidentemente, da luta pela vida, segundo Darwin, aplicada ao campo sociológico pela teoria da seleção natural, de Spencer, ambas aproveitadas pela filosofia marxista-leninista e feitas balinhas de doce na literatura infantil de Monteiro Lobato”.
Aos olhos de hoje, a obra do padre Sales Brasil pode parecer um brandir de armas desnecessário, exagerado, até mesmo risível para muitos. Entretanto, a fórmula do “cancelamento” dos anos 1950 mostra-se ainda presente nas primeiras décadas do século 21, agora reportando-se à questão do racismo, que é pauta fundamental e premente, mas que tem sido associada a Lobato, na maioria das vezes, de forma ligeira, rasa, equivocada.
No centro dos debates, tivemos o conto “Negrinha” e a obra Caçadas de Pedrinho, a partir de 2010, como objeto de representação junto ao Conselho Nacional de Educação (CNE) e, também, à Controladoria Geral da União (CGU). O questionamento se debruçava sobre expressões que atentariam contra um item do edital do Programa Nacional Biblioteca na Escola (PNBE), qual seja, a presença de estereótipos ou discriminação nas obras adquiridas pelo programa.
Entre propostas de inserção de notas de rodapé ou mesmo refacção das narrativas, a intensidade dos debates atestou a complexidade do tema, convidando aqueles dedicados aos estudos sobre a obra lobatiana a se manifestarem. Como comentou Marisa Lajolo – em manifestação pública por meio de um artigo intitulado “Quem paga a música escolhe a dança?”, de 2010 – vivenciar debates sobre a literatura e a formação dos leitores na escola equivalia a um reconhecimento público sobre o assunto, bem como da própria obra: “Caçadas de Pedrinho, de Monteiro Lobato, está em pauta e é bom que esteja, pois é um livro maravilhoso”.
Acusações de racismo e debate
O debate, porém, nem sempre tem se dado em campos mais profícuos de ideias, conceitos e ideologias. Ao avocar os escritos lobatianos em artigo publicado na Folha de S. Paulo, em janeiro de 2021, Marcelo Coelho defendeu que “Pode ser chato saber disso, mas Monteiro Lobato era de um racismo delirante”, reeditando aspectos que há muito deveriam ter sido superados frente à qualidade dos debates em torno da obra lobatiana em curso já há mais de uma década, como a busca de “provas” descontextualizadas do pressuposto racismo de Lobato, não apenas em sua obra mas no interior de sua correspondência pessoal.
Felizmente, a réplica não tardou, pois outra pesquisadora de Lobato, Ana Lúcia Brandão, veio a público em defesa do escritor, no mesmo jornal e em data muito próxima, com o artigo “ ‘Racismo delirante’ é tratamento grotesco, Monteiro Lobato merece respeito”. Entre muitos apontamentos, lembra seus leitores de que “Levar ao pé da letra palavras ou frases de uma mensagem pessoal entre amigos, para classificar um deles como “racista” revela uma enorme incompreensão do que significa a crítica literária”.
De alma lavada, o leitor lobatiano pode seguir de braços dados com Lobato. Entretanto, não se trata de vencer uma discussão ou ganhar o pódio da verdade. Como obra literária, os escritos de Lobato comportam questionamentos, dúvidas, discordâncias. Em evento acadêmico recente, em que discutíamos a obra do escritor, chamou nossa atenção uma fala de um aluno de graduação, cujo apontamento sustentava-se por meio da ideia de que Monteiro Lobato não o representava como cidadão, sujeito, pessoa imbuída e reconhecida como portadora de direitos fundamentais.
É importante esclarecer que nenhuma das ponderações desse estudante pode ser considerada irrelevante para a discussão, assim como é possível compreender o tom de agressividade de suas primeiras manifestações, face ao momento em que se dá o eternamente adiado debate sobre o racismo no Brasil. Nem ainda poderíamos discordar de que não só de Lobato se formam leitores!
O que parece um “problema” ou algo a se lamentar, porém, é o fechamento do interlocutor a textos cujas ideias continuam a contribuir para a formação inequívoca de leitores críticos mais autônomos e audaciosos em suas incursões pelo mundo da literatura. A conversa que travamos com aquele aluno, portanto, não mirava uma desqualificação de seu discurso ou certo menosprezo da intelectualidade por um suposto modismo ideológico. Ao contrário do que se poderia supor, as questões às quais nosso interlocutor se apegava com pertinência e propriedade, são essas mesmas questões que convidam à leitura da obra lobatiana, reitere-se.
É neste ponto que encerramos nosso convite irrestrito à leitura da obra infantil de Lobato. As polêmicas atestam, tanto pelo conjunto de argumentos e exposições, quanto pela presença de seus livros nas mãos de crianças do século 21, a vitalidade de suas narrativas. Presença que deve ser lembrada, sobretudo, agora que a obra do autor se encontra em domínio público e surgem inúmeras edições em papel e digitais de seus textos. O reconhecimento da amplitude e da intensidade de muitos temas, assuntos ou fatos presentes em suas histórias permite a discussão também ampla, aberta e, por que não, profunda desses temas, dos mais aos menos polêmicos. Se há, portanto, uma posição a assumir, ela se configura na busca por preservar a leitura de obras marcadas pela criatividade, inventividade e criticidade.
Cancelar Lobato, portanto, é queimar um ramo literário em que aquela tríade – criatividade, inventividade e criticidade – constitui grande probabilidade de servir a consciências imbuídas de utopias ainda tão caras à sociedade de nosso tempo.
Thiago Alves Valente fez doutorado em Literatura na Unesp e é professor de Literatura Brasileira do Centro de Letras, Comunicação e Artes (CLCA), Campus de Cornélio Procópio (CCP) da Universidade Estadual do Norte do Paraná (UENP) e coordenador do GT Leitura e Literatura Infantil e Juvenil da ANPOLL
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Imagens acima: reprodução.
“Durante um inverno… cheguei a cometer uma das maiores travessuras da minha vida. Eu tinha colocado água com milho em uma lata de goiabada para endurecer no frio e virar uma espécie de “rapadura”. No dia seguinte, quando saí para checar se estavam prontas, vi as roupas penduradas no varal inteiramente congeladas devido à baixa temperatura. Imediatamente comecei a dobrar peça por peça sem deixar nada intacto. Foi uma maravilha, fazia um barulho bonito, crocante, plec, plec, plec. … Assim quebrei todas as roupas que estavam penduradas, lençóis, toalhas, vestidos, camisas, enfim… Pouco mais tarde minha avó se lembrou da roupa e saiu correndo com um enorme cesto para recolher. Mas era tarde. Estava tudo quebrado, rasgado, imprestável.
Essa historia aconteceu de fato e é uma das lembranças de Joyce Campos, única neta do escritor Monteiro Lobato, e segundo ela, “uma das profissões mais difíceis do mundo”. A história dessa relação entre a neta e seu avô, está contada na página 32 do livro “Juca e Joyce – Memórias da neta de Monteiro Lobato”, onde, em 2007, Joyce, por meio de depoimentos à escritora, jornalista e historiadora Márcia Camargos, relatou suas memórias de sua convivência com seu avô, Juca, como era chamado em família. O livro revela através dos relatos de Joyce, um lado mais íntimo de Lobato, como seus pratos prediletos, o que ele fazia nas horas de lazer, a sua participação na educação dos filhos, suas leituras de cabeceira, a relação com a esposa, suas manias, seus passatempos e a sua paixão pela pintura e pela fotografia.
Filha única de Martha Lobato Campos, a primogênita do escritor, com Jurandyr Ubirajara Campos, que na época trabalhava como desenhista publicitário nos escritórios da Pirelli e era ilustrador do The New York Times. Joyce nasceu nos Estados Unidos, em 1930, no período em que o avô trabalhava como adido comercial naquele país. A ideia da família era talvez permanecer por lá, mas quis o destino que, por conta da Revolução que explodiu naquele ano, eles retornassem todos ao Brasil, quando a pequena Joyce tinha apenas dez meses de vida. De volta ao Brasil, a família toda se estabeleceu no bairro da Aclimação, na zona sul da capital, onde os avós, Monteiro Lobato e Purezinha, também se instalaram.
Joyce foi uma menina extremamente travessa, esperta, curiosa e imaginativa que fazia mil estripulias, e que gostava de ouvir as histórias que o avô costumava inventar e contar para ela. Em 1933, com três anos, Joyce foi morar em Campos do Jordão, no interior de São Paulo, com a avó Purezinha, sua tia Ruth e seu tio Guilherme, diagnosticado com tuberculose, já que o clima local ajudaria no tratamento da doença. Seus pais permaneceram em São Paulo e por conta dos inúmeros compromissos de trabalho, Monteiro Lobato ia e vinha regularmente. Esse período, segundo ela, foi o melhor de sua infância, pois estava junto dos avós que faziam todas as suas vontades, fazendo jus à frase: “na casa do vovô e da vovó pode tudo!”.
Joyce conta, em seu livro de memórias como neta de Lobato, que Monteiro Lobato costumava dormir poucas horas e tinha o hábito de acordar bem cedo, quase de madrugada para escrever. Joyce, sempre que estava com os avós, dormia entre os dois na mesma cama, onde eles conversavam e ela ouvia Purezinha contar o que tinha acontecido durante o dia, as novidades, quem tinha vindo visitar e Lobato contava seus planos mirabolantes, muitas vezes interrompidos sob um ataque de riso de ambos. Segundo a memória de Joyce, sua avó, Purezinha, tinha uma risada gostosa e quando contava uma caso era muito divertido, pois ela deixava tudo muito mais interessante. Até os fatos presenciados por ela, Joyce, ficavam irreconhecíveis e muito melhor, contados por sua avó. Curiosamente, Joyce aprendeu essa mesma habilidade, a de transformar qualquer caso numa história melhor do que o ocorrido.
Joyce gostava de ouvir atentamente as histórias contadas por Lobato, que inclusive lia trechos de livros que ainda estava escrevendo e ocasionalmente lhe perguntava sua opinião. Assim como o avô, a menina realmente era muito criativa e uma de suas ideias foi incorporada ao livro A Reforma da Natureza, publicado em 1939. Foi ela quem sugeriu colocar torneirinhas para tirar o leite da vaca, ideia que teria surgido em uma dessas conversas que Joyce costumava ter com o avô antes de dormir. Naquela época era comum tomar leite tirado diretamente da vaca, quentinho e Joyce contava que morria de nojo, pois costumava ir ao curral de manhã cedo para ver tirarem o leite e não gostava do cheiro, nem da sujeira.
De volta à São Paulo, em 1936, após a recuperação de Guilherme, Joyce passava a maioria do tempo na casa dos avós, onde brincava com sua melhor amiga e vizinha, Maiah Pinsard. Em entrevista à Livraria da Folha, no estande da Globo Livros, durante visita à 21ª Bienal Internacional do Livro de São Paulo, em 2010, Joyce contou que Maiah e ela costumavam brincar de casinha dentro dos caixotes abarrotados de livros e lá liam o que deviam e o que não deviam no porão da casa de Lobato, sempre cheio de livros. Desde pequenas, as amigas inseparáveis tiveram mil aventuras, foram a bailes, casaram, tiveram filhos e permaneceram amigas a vida toda. Joyce gostava de contar, com bom humor, uma das típicas aventuras que tiveram quando tinham uns onze ou doze anos: as duas decidiram visitar o jardim zoológico que existia no Jardim da Aclimação para ver os animais. A uma certa altura, para se divertirem, tiveram a ideia de provocar o urso em sua jaula com um pedaço de pau. Quando estavam nessa brincadeira de cutucar o urso, achando tudo muito divertido, repentinamente, o urso arrancou o pedaço de pau que Maiah estava segurando e “nhoc!”, mordeu a mão inteira de Maiah. Joyce, não entendendo o que estava acontecendo, gritava: “Larga o urso Maiah! Larga o urso!”. Felizmente, o animal abriu a boca para morder melhor a mão e Maiah caiu sentada. As meninas bem que tentaram ir a uma farmácia para fazer um curativo na mão, mas Joyce contava que o farmacêutico olhou horrorizado para a mão ensanguentada e se recusou a atendê-las. O jeito então foi ir para casa e pedir para Jurandyr fazer o curativo. O que salvou a mão de Maiah, foi um anel que ela tinha, o urso acabou mordendo o anel e assim não conseguiu decepar o dedo de Maiah.
A intrépida Joyce aprendeu com o pai, desde cedo, a não levar desaforo para casa. Filho de portugueses, com seis irmãos, Jurandyr era muito bravo. Naquele tempo tinha aquela coisa: “[…] brigou e apanhou lá fora, vai apanhar em casa também!” e Jurandyr praticava esse tipo de educação. Seu pai a ensinou a ler, aos 5 anos, com o livro Histórias de Tia Nastácia. Essa foi uma experiência traumática, contou Joyce em seu livro, porque seu pai costumava puni-la com um coque na cabeça toda vez que ela errava a leitura. Joyce costumava lembrar, em conversas, que nos seus tempos de criança apanhou de régua na palma da mão (palmatória) e ficou de joelhos no milho, no canto da sala, na escola. Essas eram práticas educacionais comuns na época.
Desde criança, por natureza ou pela educação que recebia em casa, Joyce se mostrou uma autêntica líder. Comandava a turma da rua, onde era a única menina, batia nos outros meninos se eles questionassem sua liderança, subia em árvores, se machucava com frequência, mas nunca reclamava.
Joyce cresceu num período de extrema atividade de Lobato. O escritor voltou de sua temporada nos EUA determinado em ajudar o Brasil a se tornar um país de primeiro mundo, independente energeticamente e passou a década de 1930, até 1941, investindo todas as suas energias e economias na luta pelo petróleo. Durante esta década, Lobato lutou pela liberdade de expressão e contra o governo ditatorial de Getúlio Vargas. Além disso, neste período, escreveu 23 livros, traduziu 32 obras da literatura internacional e abriu três companhias de petróleo. Também neste período, Guilherme, filho mais novo, faleceu, em consequência da tuberculose, com apenas 23 anos, em 1938. E finalmente, em 1941, Lobato foi preso por crime de “lesa-patria”, e sua adaptação do livro Peter Pan foi apreendido e destruído por causar má influência nas crianças. Joyce cresceu durante essa tumultuada fase da vida do avô e tudo isso teve um grande impacto em sua personalidade. Descobriu cedo que não era uma tarefa fácil ser neta de uma personalidade tão famosa. Em qualquer escola, ela sempre teve que enfrentar e se defender de acusações de Lobato ser comunista, representando um ‘perigo para a sociedade’.
Na infância, Joyce estudou por um ano na American Graded School of São Paulo, pois Lobato e Jurandyr achavam muito importante saber falar inglês. Apesar de não ter o sobrenome Lobato, porque seu pai optou por colocar apenas o sobrenome dele, logo os professores descobriam o seu parentesco com o escritor e passaram a exigir dela um desempenho muito melhor nessa matéria. Além da exigência por boas notas em português, Joyce se lembrava de ter tido uma professora dessa matéria, chamada dona Olga, que era muito fã do escritor e resolveu fazer uma montagem do Sítio do Pica-Pau Amarelo, para ser apresentada no encerramento do ano letivo. Ela foi escalada para interpretar o papel de Tia Nastácia e, por desenhar bem, foi também responsável pelos desenhos e figurinos da peça. Porém, o mais difícil talvez tenha sido o fato dela ter que encarar o avô na plateia, convidado de honra para prestigiar a apresentação.
Da escola Americana, Joyce foi para o Mackenzie, e no colegial era chamada de “tovarish”, que significa camarada, em russo, porque as pessoas achavam que ela era neta de um comunista. Teve que aprender a se defender a defender a reputação do avô. Depois de terminar o secundário, cursou e se formou em arquitetura pela Universidade Mackenzie. Curiosamente, nenhum dos quatro filhos de Monteiro Lobato fez faculdade. O mais comum para as mulheres na década de 1940 e 1950 era seguir carreira como secretária ou professora de primeiras letras. Joyce foge ao padrão familiar, e não só cursa faculdade mais escolhe ser arquiteta e não professora. Ela foi uma das cinco mulheres da sua turma no curso de Arquitetura, que tinha outros sessenta homens. Após formada, Joyce trabalhou em diversos escritórios de arquitetura e em 1958, com 28 anos, se casou com o engenheiro Jerzy Kornbluh (2/12/1930 – 15/11/2015) – que preferia ser chamado de ‘Jorge’ – judeu polonês não religioso, refugiado de guerra, que havia chegado com os pais e a irmã, ao Brasil aos 11 anos, fugindo do Holocausto na Europa.
Neste momento, a menina que gostava de ouvir as histórias contadas pelos avós, que amava viajar e criava suas próprias aventuras na vida real, saiu de cena, dando lugar, a partir do casamento, a uma esposa dedicada em apoiar o marido e a fazer tudo para ajudá-lo a progredir na carreira. Dessa união, nasceu Cleo, filha única do casal. Durante muitos anos Joyce se dedicou ao marido e a filha, costurando e pintando todas as roupas de Cleo por muitos anos, aprendendo a cozinhar para servir jantares para os negócios de Jorge e assumindo a função de matriarca da família, a pessoa que todos perguntam a opinião, a pessoa que resolve todos os problemas e é o pilar da família.
Em 1971, uma tragédia abala a família. Ruth, filha mais nova de Lobato, se suicida. Joyce, o pilar emocional da família, assume este peso e seu marido, Jorge começa a assumir o papel de representante da família para os negócios relacionados com a obra de Lobato.
Voltando um pouco atrás…depois da morte de Lobato em 1948, Ruth, e Purezinha assumiram a missão de promover o legado do escritor, mantendo viva a sua memória. Juntas e com a ajuda dos amigos do escritor, elas conseguem organizar a primeira Semana Monteiro Lobato, na cidade de Taubaté, onde Lobato nasceu. Purezinha fez uma doação de roupas e móveis, além de livros e manuscritos de Lobato para a Biblioteca Monteiro Lobato em São Paulo. Ruth e Purezinha estabeleceram o legado de Monteiro Lobato, e trabalharam incansavelmente até o falecimento de Purezinha em 1959. Neste período, com autorização delas, foi realizado o primeiro filme baseado na obra infantil de Lobato, O Saci e também o primeiro programa de TV baseado na obra infantil, dirigido por Julio Gouveia e Tatiana Belinky, amigos de Purezinha e Lobato, indo ao ar pela extinta TV Tupi.
Após a morte de Purezinha em 1959, Martha passou a ajudar Ruth, fazendo a parte pública, dando entrevistas para programas de TV e para os jornais, enquanto Ruth se concentrava na parte dos negócios. Martha e Ruth tocam os negócios Durante vários anos até a morte de Ruth em 1971 quando Jorge e Joyce assumem este papel.
Em 1977 é assinado o contrato para a produção do primeiro seriado do Sítio do Pica-Pau Amarelo a cores, na TV Globo. Aos poucos, com o passar do tempo, Martha reassumiu os compromissos que fazia antes e junto com Joyce, passar a fazer a parte pública juntas, enquanto em 1995 Jorge passou a representar oficialmente a família Monteiro Lobato através da Monteiro Lobato Licenciamentos. A empresa passou a responder, com o parceiro comercial, Álvaro Gomes, pelos contratos com a TV Globo para a produção da segunda série do Sítio do Pica-Pau Amarelo para a televisão, no ano 2001 e de 2012 e por todos os licenciamentos.
Ao lado do marido, com Martha já de certa idade, Joyce passou a cumprir a face pública de representar a família integralmente. Ela tinha agora uma agenda intensa, repleta de compromissos que continuou a exercer até seus 85 anos de idade. Joyce regularmente dava entrevistas aos mais diversos veículos de comunicação, a participava de inaugurações de orfanatos, escolas e bibliotecas, fazia doações de livros, além de opinar nas fantasias dos personagens do seriado, inclusive lendo e aprovando todas as sinopses dos episódios da série na TV Globo, especialmente a de 2001. Joyce se manteve sempre ativa, participando do Programa do Jô e do Bial na TV Globo entre outros, participando de todas as Semanas Monteiro Lobato, em Taubaté ou no Cemitério da Consolação, opinando sobre a qualidade e o design dos produtos licenciados e sempre ajudando estudantes e pesquisadores quando a procuravam pedindo informações sobre seu avô.
Em 1998, após uma minuciosa pesquisa de anos em diversos acervos de diversas instituições e na casa da família, em São Paulo, os historiadores Marcia Camargos e Vladimir Sacchetta, lançam o livro Furacão na Botocúndia que foi acompanhado de uma exposição de mesmo nome, em comemoração aos 100 anos do nascimento de Lobato. Joyce e o marido rodaram as capitais do Brasil, junto com os autores da obra, levando o conhecimento da vida e obra de Lobato para o Brasil inteiro. Desta experiência nasceu uma grande amizade entre os quatro, especialmente entre Marcia e Joyce, e convidada por Marcia, Joyce dá uma série de depoimentos de como é ser neta de Monteiro Lobato que se tornam o livro “Memórias da neta de Monteiro Lobato – Juca e Joyce”, lançado pela Editora Moderna em 2007 mencionado no início deste artigo.
Em 1999, a convite da professora Marisa Lajolo, Joyce e Jorge visitaram a exposição “Vendo e Escrevendo Monteiro Lobato“, na sede da Universidade de Campinas, a Unicamp. Após conhecerem as dependências do CEDAE – Centro de Documentação Cultural “Alexandre Eulálio” – e o trabalho desenvolvido naquele local, a família decidiu doar à Universidade, o acervo deixado pelo escritor e guardado há anos na casa da família. A intenção era de abrigar este acervo num espaço fisico onde o mesmo seria conservado e preservado. Muito importante também era o publico e os estudiosos de Lobato terem sempre acesso a este material precioso. A Unicamp criou, então, o Fundo Monteiro Lobato dentro do CEDAE e a doação foi consolidada no dia 20 de julho de 2000. No acervo existem diversos documentos das mais diversas fases vividas por Lobato, seja como escritor, editor, adido comercial, desenhista e empreendedor. São documentos pessoais, vasta correspondência do período de namoro com Purezinha e outras trocadas com amigos; escritores, editores, etc.; além de livros; originais manuscritos e datilografados de contos, crônicas, literatura infantil, traduções, desenhos, aquarelas e fotografias de sua autoria. É importante destacar essa nobre atitude da família do escritor, que com esse gesto permitiu a qualquer pessoa interessada em saber mais sobre o pai da literatura infantil brasileira, ter acesso a documentos importantes referentes ao escritor.
Joyce Campos Kornbluh, faleceu no dia 26 de janeiro deste ano, aos 93 anos, a última descendente de Monteiro Lobato que teve contato direto com o pai da literatura infantil brasileira. Até os seus ultimo dias Joyce foi generosa com seu tempo, com suas memórias de Lobato, ajudando pesquisadores, estudantes, dando autorizações para uso de imagem e inclusive apoiando a sua filha Cleo na nova versão atualizada do livro “Reinações de Narizinho’”.
Entre tantas qualidades apontadas pela historiadora Márcia Camargos, que citamos no início deste artigo, vale o destaque para o resumo sobre quem foi Joyce Campos: “uma observadora privilegiada, que presenciou a vida de Monteiro Lobato, com uma intimidade que os historiadores não têm”.
“Só tive noção da dimensão da obra dele depois de sua morte. A gente admira o avô porque é avô, não porque é Monteiro Lobato” – Joyce Campos.
Se o universo lobatiano nos permite sonhar, quem sabe ambos não estejam agora a passear pelas terras do Sítio do Pica-Pau Amarelo, em meio a todo aquele cenário encantador, cercados pelos personagens que encantaram tantas gerações.
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REFERÊNCIAS:
Luto: ‘Me ensinou tudo o que uma criança não podia fazer’, dizia neta sobre Lobato (sampi.net.br)
https://cedae.iel.unicamp.br/fundos/MLb_Catalogo.pdf
Entrevista com Cleo Monteiro Lobato
Perguntado por qual motivo ele iria se mudar para a Argentina, Monteiro Lobato com sua peculiar ironia respondeu: “Vou lá comer bifes”.
Fato, é que naquele período o escritor vivia um verdadeiro inferno astral, sofrendo com a perseguição implacável do regime ditatorial de Getúlio Vargas, que inclusive o levou a prisão, de forma injusta, em 1941. Esse acontecimento deixou a família de Lobato em uma situação muito delicada, ao ponto de sua esposa, Purezinha e sua filha mais nova, Ruth, serem obrigadas a irem morar com Martha, a primogênita do casal, porque sequer tinham dinheiro para pagar o aluguel da casa onde moravam.
Mesmo após ser libertado, o escritor continuou sofrendo com a perseguição do regime getulista, que impôs a ele uma implacável censura, proibindo-o de dar entrevistas e vetando que os jornais noticiassem qualquer informação sobre Lobato. Além disso, o governo de Vargas mandou apreender diversos de seus livros sob a acusação de conterem “doutrinas perigosas e práticas deformadoras do caráter”, especificamente, Peter Pan e O Escândalo do Petróleo. Monteiro Lobato foi impedido de trabalhar, teve a fonte de renda para o sustento de sua família bloqueado, numa ação do Estado Novo para literalmente acabar com o escritor. Não bastando tudo isso, em setembro de 1945, Lobato foi submetido, as pressas, a uma cirurgia para a retirada de um cisto no pulmão.
Todos esses fatos acabaram levando o escritor a mergulhar em um profundo sentimento de desgosto, tristeza e decepção com a política e com o Brasil daquela época. A perseguição getulista, a censura imposta às suas obras, a consequente falta de dinheiro para sobreviver com o mínimo de dignidade e a sua própria saúde, estimularam Monteiro Lobato a decidir a se mudar para a Buenos Aires, na Argentina, onde ele já fazia sucesso desde a década de 20. Lobato sabia que seria bem recebido pois tinha estabelecido ali um mercado editorial promissor, segundo o seu biógrafo, Edgar Cavalheiro, autor de Monteiro Lobato – Vida e Obra. Desse modo, ao contrário da ironia e humor incutidos em sua resposta, de que deixaria o Brasil para aproveitar a culinária argentina, a mudança de país naquele momento foi uma espécie de autoexílio aliada a necessidade econômica.
Assim, no dia 8 de junho de 1946, cerca de quatro meses após se tornar sócio da Editora Brasiliense, Monteiro Lobato se mudou com a esposa, Purezinha e a filha Ruth para Buenos Aires. Essa mudança foi noticiada pelos principais órgãos de imprensa dos dois países na época, em tons diferentes. Na imprensa brasileira repercutiu a tristeza gerada pela saída do escritor do país, que recebeu no aeroporto amigos e jornalistas. Já o jornal Clarín, um dos mais importantes até hoje na Argentina, enalteceu a figura do escritor, ressaltando, com certa ironia, o motivo que o fez mudar para lá: “comer bifes”, exaltando a carne argentina. O escritor morou com a família, na capital portenha, na Calle Sarmineto, 2.608, região central da província. Nos primeiros meses em Buenos Aires, Monteiro Lobato levou uma vida bastante agitada com inúmeros convites para os mais diversos eventos, que foram importantes para fortalecer suas relações com diferentes espaços da cultura argentina.
Esses compromissos iam muito além de almoços na embaixada, passeios pelo Tigre e lutas de boxe. Como já era famoso entre as crianças, Lobato também aproveitou para visitar escolas, conversar e ouvir a opinião de seus pequenos leitores argentinos sobre suas histórias. Nesse período ele também aproveitou para conhecer, pessoalmente, o amigo Manuel Gálvez, com quem se correspondia desde os anos 1920, e de quem publicou textos na Revista do Brasil, além de ter editado e lançado, em português, o romance Nacha Regules, em 1924.
Lobato, sua esposa D. Purezinha e Ruth, filha caçula
Essa boa relação que Lobato tinha com os hermanos do Prata, surgiu através de sua amizade com o jornalista e editor argentino, Benjamín Bertoli Garay, que ele conheceu por intermédio de Manuel Gálvez. Em 1920, Garay se aproximou do grupo modernista de São Paulo e passou a integrar a equipe da revista A Colmeia. Esse trabalho serviu como inspiração para que Garay sugerisse a criação de A Novela Semanal, uma revista brasileira similar a La Novela Semanal, que circulou na Argentina entre 1917 a 1925. O escolhido para a edição inaugural da publicação, que saiu em 1921, pela Editora Olegário Ribeiro, foi justamente Monteiro Lobato com seu texto Os Negros. Nesse mesmo ano, pela Editorial Pátria, de Manuel Gálvez, Garay traduziu Urupês para o castelhano. Importante agente consolidador das relações literário-culturais entre Brasil e Argentina, além de Monteiro Lobato, Garay traduziu e divulgou na capital portenha, obras de outros ilustres escritores brasileiros como Graciliano Ramos, Gilberto Freyre e Euclides da Cunha.
Conforme a pesquisadora Thaís de Mattos Albieri, autora da tese de doutorado “São Paulo-Buenos Aires – A Trajetória de Monteiro Lobato na Argentina”, um exaustivo trabalho de pesquisa sobre as relações literárias do escritor brasileiro com o país vizinho, essa boa relação de Lobato com o cenário cultural portenho teve início em 1919 e se prolongou até sua morte, sendo construída por meio de cartas e artigos de jornais, numa via de mão dupla que, de um lado, incluía textos de Lobato (e sobre ele) na imprensa de Buenos Aires, e de outro, artigos de autores argentinos que ele publicava na Revista do Brasil, além dos livros que lançou através de sua editora, a Companhia Gráfico-Editora Monteiro Lobato.
A “marca Lobato” fazia tanto sucesso entre os argentinos, que a mudança do escritor para lá só elevou ainda mais a sua popularidade. O sucesso de Lobato era tanto no país vizinho, que foi lá que aconteceu o lançamento da primeira boneca Emília no mundo, num modelo de pano, no final da década de 1930, conforme o diretor do SBT, Jefferson Cândido, colecionador de produtos licenciados e material relativo TV do Sitio do Pica- Pau Amarelo. Este sucesso de Lobato no país vizinho continuou ao ponto de em 1943, acontecer o lançamento da primeira radionovela infantil da obra infantil de Monteiro Lobato com 39 histórias do Sítio do Pica-Pau Amarelo. O magazine Harrod´s – uma loja de departamentos elegante de Buenos Aires, realizou a primeira “Semana Monteiro Lobato”, em setembro de 1946, um grande evento onde foram expostos todos os livros do escritor, em meio a cartazes, bonecos, além da apresentações teatrais extraídas de suas obras. Aqui no Brasil, a primeira “Semana Monteiro Lobato”, só foi realizada entre os dias 11 e 18 de abril de 1953, na cidade de Taubaté, no interior de São Paulo após a morte do escritor e todos os cem participantes foram fichados pelo Departamento de Segurança do Estado Novo, o DEOPS.
Em Buenos Aires, o escritor topava com muitos brasileiros, em especial na Rua Calle Florida (ou Rua Florida para os brasileiros), que ainda hoje é a mais famosa da capital portenha, que desde aquela época já era uma rua de compras frequentada por pessoas elegantes. Muitos desses conterrâneos de Lobato acabavam inclusive batendo à sua casa toda semana, apesar da dificuldade de descobrir seu endereço, porque ele não tinha telefone. Apesar disso, Lobato costumava reclamar do tédio, em cartas aos amigos, por não ter o que fazer. Lobato, que no Brasil estava sempre envolvido em grandes projetos, amava o trabalho e sentia muita falta da vida corrida cheia de projetos.
Lobato rodeado por crianças, em Buenos Aires
Um empreendedor inveterado, em poucos meses após chegar no novo país, ele se associou a dois argentinos: Ramón Prieto e Miguel Pilato, para fundar a editora Acteón, em agosto de 1946, instalada na Avenida de Mayo, 654, 2º piso, em Buenos Aires. O empreendimento se tornou uma oportunidade de reviver os tempos em que foi o editor e gerente de sua própria obra, no Brasil. Pela Acteón, Lobato publica, com grande sucesso, Os Doze Trabalhos de Hércules, traduzido por seu sócio, Ramon Prieto, em uma edição de luxo, intitulada Las Doce Hazañas de Hercules, naquele mesmo ano de 1946.
Na Argentina, o escritor usou a mesma estratégia que havia adotado no Brasil para divulgar o seu trabalho: a publicação de contos, ou de trechos de obras, em jornais e revistas, para se fazer conhecido antes de sair em livro.
Baseado no Plano Quinquenal implantado pelo general Juán Perón, presidente argentino na época, Lobato escreve La Nueva Argentina, seu único livro originalmente em castelhano, publicado em 1947, que ele assina sob o pseudônimo de Miguel P. Garcia. Com uma edição de 3 mil exemplares, o livro, com 152 páginas, é dirigido ao público jovem e tem como fio condutor da história um diálogo entre Don Justo Saavedra, pai de dois meninos: Pancho e Pablo, que explica aos filhos o que é o plano quinquenal do governo Perón. Ainda hoje paira a dúvida de por que Lobato escreveu este livro usando um pseudônimo e para um governo autocrata. Para a pesquisadora Thaís de Mattos Albieri, que citamos anteriormente neste artigo, a suspeita é de que a obra tenha sido uma encomenda do próprio Perón, que queria se aproveitar da fama do escritor para promover o seu governo. A controvérsia aumenta, pelo fato do biógrafo de Lobato, Edgar Cavalheiro, negar que o escritor seria adepto ou apreciador do peronismo. Afinal, como poderia Lobato, que tanto havia sofrido com a perseguição e a censura de Getúlio Vargas no Brasil, ser a favor do peronismo, um governo muito parecido com do ditador brasileiro, que ele tanto combateu e inclusive o teria forçado a se mudar de país? São muitos os mistérios que cercam esse episódio. Hoje, na Argentina, conforme a pesquisadora Thaís Albieri, em entrevista para o jornal Folha de São Paulo, publicada em 25 de abril de 2010, não existe mais nenhum exemplar, desse livro. Ela acredita que o mesmo tenha sido recolhido e queimado.
Fato é que a narrativa do escritor conquista a simpatia dos peronistas e leva o Conselho de Educação da Província de Buenos Aires a encomendar uma nova tiragem de 150 mil exemplares para serem distribuídos nas escolas. Com isso, alguns jornalistas brasileiros, entre os quais, Claudio Abramo, do Jornal de São Paulo, passaram a acusar, na época, o escritor de ter-se vendido ao peronismo. Lobato chega a rebater as críticas, defendendo a liberdade de imprensa em qualquer parte do mundo, mas preferiu parar por aí.
Apesar de todo o interesse do governo argentino em concretizar a encomenda dos livros, o processo burocrático para a liberação do pedido acaba demorando muito mais do que o esperado, mesmo com todos os esforços para desfazer os entraves, o que acaba se tornando um grande problema para Lobato, do ponto de vista financeiro. Diante dessa dificuldade, ele percebe que não conseguiria se manter na Argentina definitivamente, como pretendia inicialmente e então passa a cogitar em viajar para o Peru. Essa viagem acaba não se concretizando, porque Lobato tem problemas de saúde. Ele então retoma a ideia de escrever um livro contando a história da conquista da América, através da curiosidade da Emília, a falante boneca do Sítio do Pica-Pau Amarelo, porém também não chega a concretizar esse plano.
A estadia de Lobato em solo argentino chegou ao fim em maio de 1947, praticamente um ano depois de chegar. Lobato regressa com a família para São Paulo, deixando ainda em atividade a editora Acteón, da qual ainda era sócio. Ele também manteve seus livros em castelhano editados pela Americalee e continua acompanhando as negociações em torno da nova tiragem de La Nueva Argentina, que ficaram a cargo de Ramón Prieto. Apesar do empenho de pessoas influentes no Conselho de Educação e no organismo Interministerial, esse processo ainda se mantinha travado no governo argentino.
No final de 1947, Lobato decide então vender os direitos de La Nueva Argentina para o governo peronista, com o valor da negociação servindo para a liquidação da editora Acteón, que havia acumulado prejuízos aguardando o desenrolar da negociação. Todo esse imbróglio trouxe grandes prejuízos ao escritor, que ao voltar, foi obrigado a viver num apartamento emprestado por Caio Prado Junior, no 12º andar da editora Brasiliense, após viver em hotéis.
Apesar disso, Lobato manteve sua popularidade em alta entre os leitores do Prata, através de seus livros infantis que continuaram sendo traduzidos e publicados pela editorial Americalee, que também comprou os direitos de venda do livro Os Doze Trabalhos de Hércules (Las Doce Hazañas de Hercules).
Em 1947, um acordo entre Lobato e a editora Códex, resultou no lançamento de Libros Juguetes (livros brinquedos)com ilustrações que se movimentavam, dando à cena descrita na história, movimento e vivacidade. O primeiro título foi La Casa de Emilia, seguido por Cuento Argentino, com uma tiragem de 10 mil exemplares cada, que renderam ao escritor um faturamento de 1000 pesos no total.
Monteiro Lobato morreu um ano após a sua volta, após ter sido a “ponte literária” entre Brasil e Argentina. Sua produção literária em castelhano promoveu um importante trabalho de intercâmbio continental. Assim como no Brasil, em outros países latinos a obra de Lobato criou uma literatura infantil diferente das existentes em meados do século XIX, estabelecendo uma profunda e duradoura relação com a escola. O tempo passou e depois do boom que seus livros infantis tiveram entre os anos 1940 e 1960, Monteiro Lobato voltou a ter uma de suas obras publicadas na Argentina. Reinações de Narizinho, que por lá ganhou o título de Las Travesuras de Naricita, foi lançado em 2010, em uma reedição de 170 páginas, durante a 36ª Feira Internacional do Livro de Buenos Aires. Na época, a atual vice-presidente argentina Cristina Kirchner e a ensaísta Beatriz Sarlo, uma das mais respeitadas intelectuais argentinas, que cresceram lendo as histórias do Sítio do Pica-Pau Amarelo, fizeram questão de declarar sua admiração pelo escritor.
Definitivamente, mais que comer bifes, Monteiro Lobato foi à Argentina para também escrever o seu nome na história. E assim, o país que rivaliza com o Brasil em tantas áreas, conquistou também o coração do pai da nossa literatura infantil e por que não dizer, dos pequenos latinos?
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REFERÊNCIAS:
“Furacão na Botucúndia” – pág. 343 a 346
monteirolobato.com/linha-do-tempo/1945-1948-os-ultimos-anos-de-lobato/
https://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs2504201008.htm
https://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs2504201007.htm
https://www1.folha.uol.com.br/folha/livrariadafolha/ult10082u708944.shtml
https://alb.org.br/arquivo-morto/edicoes_anteriores/anais16/sem08pdf/sm08ss05_03.pdf
Originária da junção de duas palavras inglesas, ‘folk’ (povo) e ‘lore’ (conhecimento), a palavra ‘folclore’ surgiu no século XIX, através do pesquisador britânico William John Thoms, ganhando desde então o significado literal de “conhecimento do povo” ou “aquilo que o povo faz”. O termo foi registrado pelo autor, através de uma carta publicada pela revista britânica The Athenaeum, em 22 de agosto de 1846, na qual ele sugeria que todo o conjunto de tradições ou “antiguidades” populares poderia ser definido pela palavra “folklore”. De modo geral, podemos entender como folclore, o conjunto de práticas e saberes de um determinado povo, transmitido de geração para geração. A partir dessa carta de John Thoms, o termo “folklore” se popularizou entre os países ocidentais, despertando o trabalho de estudiosos e muitas nações decidiram eleger o dia 22 de agosto como o dia oficial do folclore, de modo a valorizar e mostrar a importância de todas as manifestações que caracterizam a cultura popular de um país, como suas lendas, canções, mitos, danças e artesanatos entre outros. Entendendo a sua significância e a necessidade da sua preservação, a Unesco reconhece o folclore como Patrimônio Cultural Imaterial.
Aqui no Brasil o movimento mais representativo aconteceu no Rio de Janeiro, em agosto de 1951, com o “Iº Congresso Brasileiro de Folclore”, onde foi elaborada a Carta do Folclore Brasileiro, mas o Dia do Folclore só foi oficializado no Brasil em 1965, sendo celebrado anualmente, também no dia 22 de agosto. Isso aconteceu graças ao grande volume de estudos sobre a cultura popular brasileira que já haviam sido feitos, desde o século XIX, onde se destacavam estudiosos como Mário de Andrade, Câmara Cascudo e Monteiro Lobato, entre outros intelectuais nacionalistas que estudavam as características culturais de cada canto do Brasil.
Natural do Vale do Paraíba, Lobato cresceu num ambiente interiorano, passando boa parte do seu tempo de infância entre a Fazenda São José do Buquira, a fazenda Paraíso, e a fazenda da cidade, chamada de chácara do Visconde. Desde pequeno, Lobato sempre ouviu muitas histórias sobre Saci, Mula sem Cabeça, Curupira, Cuca, que eram contadas pelos trabalhadores das fazendas. Todo esse contexto despertou o interesse do escritor pelo folclore nacional, especialmente pelo personagem do Saci.
Em 1914, passeando pelo Jardim da Luz em São Paulo com um amigo, Lobato se deparou com a famosa cena que ele imortalizou num texto publicado na Revista do Brasil em1916, chamado A poesia, de Ricardo Gonçalves:
“Pelos canteiros de grama-inglesa há figurinhas de anões germânicos […] porque tais nibelungices, mudas à nossa alma, e não sacis-pererês, caiporas, mães d’água e mais duendes criados pela imaginação do povo?”
Inconformado com a falta de orgulho na nossa própria identidade nacional, Lobato passou a explorar mais a fundo a lenda do Saci-Pererê e no começo de 1917. Realizou uma pesquisa de opinião pública, no suplemento vespertino do jornal O Estado de São Paulo, chamado Estadinho, para colher as respostas dos leitores a respeito das versões sobre o lendário personagem. O inquérito foi um sucesso e Monteiro Lobato recebeu dezenas de respostas de todo o Brasil. No ano seguinte, 1918, Lobato reúne os relatos num livro e lança O Saci Pererê: resultado de um Inquérito. A ótima repercussão dessa iniciativa, então, o motivou a realizar também uma exposição de pintura e escultura sobre o mesmo tema.
Três anos mais tarde, em 1921, ele então lança O Saci, para o público infantil, que acaba norteando definitivamente a sua carreira de escritor. Nessa história, Pedrinho, orientado pelo Tia Barnabé, captura um Saci. Ambos vivem uma grande aventura na floresta onde durante a noite e o Saci protege Pedrinho dos diversos personagens do folclore brasileiro e acabam discutindo sobre temas relevantes, do tipo: quem é mais desenvolvido, os humanos ou os animais e criaturas das florestas? O Saci assume o protagonismo desta discussão filosófica, e dá uma verdadeira aula sobre comportamento, respeito, amor ao próximo e principalmente a importância da preservação da natureza. Em meio a essa aventura, o Saci ajuda Pedrinho a salvar Narizinho da Cuca e desta vez Lobato dá uma aula sobre o bem mais precioso do mundo: a liberdade.
Definitivamente, Monteiro Lobato foi um divisor de águas na literatura infantil. Ele criou um estilo próprio e inovador de escrever para crianças, dando outro sentido às histórias que ele próprio ouviu na infância. Suas histórias impressas no papel criaram um mundo imaginário ao alcance de todos, imortalizados. Recorrendo às fontes originais das lendas folclóricas e inserindo-as em suas obras, Monteiro Lobato criou uma ferramenta poderosa de ensino infantil, que deram aos seus livros um conceito didático, revolucionário e inovador. Fato é que Lobato sempre foi um exímio contador de histórias, que tinha em seu ‘DNA’, o brasileirismo para entender a importância e exaltar nossos mitos e lendas, contos e fábulas populares.
Curiosamente, a jornalista, pós-graduada em Educação Infantil, Rosângela Marçolla, enxerga Monteiro Lobato como um ‘folk’ comunicador que através dos seus livros, se tornou um agente ‘folk’ midiático, responsável pela disseminação de narrativas da nossa cultura popular em forma de obra literária. A “Folk-comunicação”, é uma teoria brasileira proposta pelo sociólogo e pesquisador Luiz Beltrão, em sua tese de doutorado em 1967, que analisa a comunicação que se dá por meio do folclore e as estratégias de comunicação adotadas pelos chamados “grupos marginalizados”, rurais e urbanos. Lobato absorveu muito das histórias da nossa tradição oral, da nossa cultura popular, vinda de ex-escravos, das nossas tribos indígenas e dos nossos emigrantes para enriquecer a mais fantástica e singular obra da nossa literatura infantil e sobretudo para revelar ao mundo a nossa extraordinária cultura popular. Como um legítimo agente ‘folk’ midiático, o escritor teve um papel inovador e revolucionário, através dos seus livros, como uma espécie de porta-voz das pessoas excluídas socialmente, sem acesso ao estudo, que formavam a maioria analfabeta do nosso país naquela época.
No Brasil, quando falamos de folclore, automaticamente lembramos do Saci, da Cuca, do Curupira, da Iara, da Mula sem cabeça, do Boitatá e de tantos outros personagens popularizados através das obras de Monteiro Lobato, em histórias que ainda hoje continuam passando de geração para geração.
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REFERÊNCIAS:
https://mundoeducacao.uol.com.br/datas-comemorativas/dia-folclore.htm
https://exame.com/pop/dia-do-folclore-entenda-a-origem-data-que-e-comemorada-no-dia-22-de-agosto/
https://www.educamaisbrasil.com.br/enem/datas-comemorativas/dia-do-folclore
https://www.educamaisbrasil.com.br/enem/datas-comemorativas/dia-do-folclore
Era o final do século XIX, a proclamação da República encerrava o período do Brasil Imperial e apesar da base da nossa economia ainda se manter na agricultura, tendo o café como o produto mais cultivado e exportado pelo país, a industrialização dava seus primeiros passos. Esse novo cenário passou a exigir que o país se fortalecesse e desenvolvesse o seu próprio setor industrial, considerando ainda a man era como a abolição da escravidão em 1888 ocorreu “da porteira para fora” e sem nenhum tipo de mão de obra especializada, as poucas indústrias que começavam a surgir por aqui decidiram substituir a mão de obra escrava pelo trabalho do imigrante estrangeiro, tendo assim início também, o surgimento de uma política imigratória.
É a partir desse cenário que o Brasil passa a ser cada vez mais pressionado para promover uma profunda reforma em todo o seu sistema educacional e Monteiro Lobato se torna, pelo seu trabalho como escritor e editor e sua crença na melhoria da ser humano pela ciência, uma das principais personalidades nesse processo, a apontar o caminho da educação como a base para o desenvolvimento do nosso país. Quase um iluminista, Lobato acreditava que através da ciência seria possível melhorar a qualidade de vida das pessoas, dentro da ideia de se trabalhar e prosperar, através de melhor saúde e melhor educação.
Nessa linha desenvolvimentista, o movimento Escola Nova, que surgiu inicialmente na Europa e logo conquistou adeptos nos Estados Unidos, no final do século XIX, reuniu educadores que passaram a questionar e a se contrapor aos métodos de ensino tradicionais da época. Ultrapassada a educação escolar que já não tinha tanta eficácia na realidade social exigida naquele novo período e não preparava os alunos para que de fato eles se tornassem cidadãos bem adaptados ao convívio social. Na América o grande propagador desse movimento foi o filósofo e pedagogo estadunidense John Dewey, responsável por influenciar os principais educadores brasileiros da época, como Fernando de Azevedo e Anísio Teixeira.
Aqui no Brasil o movimento estourou a partir da primeira metade do século XX, em meio aos impactos importantes de transformações econômicas, políticas e sociais. Os chamados escolanovistas defendiam o respeito a diversidade, a individualidade do sujeito e o incentivo a liberdade de pensamento em relação a sociedade brasileira. Para eles a educação escolarizada deveria ser sustentada no indivíduo integrado à democracia, na formação do cidadão atuante.
Monteiro Lobato se identificava com essas ideias, porque ele também acreditava que esse era o caminho para vencer os desafios e tornar o Brasil um país próspero. Afinal no início do século XX os índices de analfabetismo eram estarrecedores, o povo incapaz de formar suas próprias opiniões ou defender suas ideias, cenário que se tornara um grande obstáculo para o desenvolvimento do país. O escritor se entusiasmou em especial, com a obra de Anísio Teixeira, que ele conheceu em 1927, em Nova Iorque. Naquela época, Lobato já era um escritor consagrado e trabalhava como adido comercial brasileiro, enquanto o educador baiano ainda era um jovem intelectual que fazia especialização no Teachers College da Universidade de Columbia e dava os primeiros passos no campo da educação, em defesa do ensino público nacional. Ambos se encantaram com os Estados Unidos e acreditavam que era possível trazer para o Brasil as ideias e diretrizes do progresso estadunidense, com a devida contextualização territorial e cultural. A partir desse primeiro
encontro nasceu uma forte e duradoura amizade entre os dois, e os vínculos afetivos entre eles foram se fortalecendo através dos anos, principalmente pela afinidade de ideias nacionalistas e a preocupação com o desenvolvimento do país, como revelam as inúmeras cartas trocadas entre eles.
Em 1928 Lobato recebeu um livro de Anísio Teixeira, chamado Instrução Pública no Estado da Bahia, publicado pelo escritor baiano naquele mesmo ano. Lobato se entusiasmou com as ideias propostas no livro e recomendou a Teixeira, que enviasse um exemplar do mesmo ao secretário da Presidência da República na época, Alarico Silveira, e outro ao Fernando de Azevedo, diretor de Instrução no Rio de Janeiro. Lobato escreve a Silveira e a Azevedo, recomendando que ambos lessem com atenção o trabalho do educador para conhecer suas ideias, conforme registro encontrado em uma das cartas trocadas entre eles em 1929. Fernando de Azevedo, era um dos principais articuladores do movimento em defesa da renovação educacional no país, nos anos 1920 e 1930, e Anísio Teixeira, um defensor da necessidade de integrar a aprendizagem escolar às experiências sociais em geral. Ele acreditava que só por intermédio dessa experiência, a criança seria capaz de perceber o sentido das coisas, de como o que a criança estava apreendendo teria aplicação prática em sua vida, num processo de “reconstrução imaginativa”, mais do que de repetição ou treino.
Entre Lobato e Anísio, surgiu uma amizade sólida, de respeito mútuo e admiração reciproca que cresceu sem grandes esforços, devido até mesmo pela afinidade de ideias de ambos, a preocupação com o destino da educação brasileira e o desejo de dar um futuro melhor às crianças brasileiras. Essa amizade está evidente nas cartas trocadas entre eles no período de 1928 e 1947, verdadeiros documentos que trazem textos de conteúdo crítico e de escrita cuidadosa. Os amigos, se apoiavam em seus projetos profissionais e quando necessário, também faziam críticas ou davam sugestões, se bem que isso era raro, pois na maioria das vezes prevalecia a admiração que um nutria pelo trabalho do outro. Devido a precariedade de transporte à época, assim como acontecia com os jornais, as cartas não chegavam com a velocidade desejada, mesmo assim, elas permitiam a circulação de informações sobre os mais variados assuntos e ideias que fomentavam a vida dos intelectuais, dentro e fora do país.
A partir do seu encontro com Anísio Teixeira em Nova York, em 1930, Lobato ficou encantado com a ideia de ensinar de forma divertida através de histórias, dando um novo teor pedagógico aos livros, indo de encontro aos ideais escolanovistas e com a nova concepção atualizada da infância. O escritor posicionou a criança no lugar central do processo educacional e ofereceu a ela mais liberdade para expressar os seus interesses e os seus impulsos dentro dos seus próprios livros. Reconheceu que a criança tem certas particularidades e que para despertar nelas o interesse pela leitura, era preciso utilizar recursos relacionados à própria infância, como a ludicidade, a fantasia e a imaginação. Através do universo criado por suas histórias, Lobato conectou a criança, o professor, o ambiente de aprendizado e os conteúdos de ensino à filosofia pedagógica da Nova Escola.
Mesmo antes de conhecer Anísio Teixeira e o movimento Escola Nova, Lobato já era um ferrenho defensor do poder da educação para o progresso do Brasil. Suas ideias, apesar de convergentes, se desenvolveram paralelamente. Enquanto a Escola Nova é um movimento teórico, amplo e profundo, baseado na proposta de mudanças da própria sociedade, a literatura lobatiana percorreu um caminho norteado pelo entusiasmo dessas mudanças, numa percepção própria da genialidade de Monteiro Lobato.
Levando em consideração a criança fora do livro (que lia) e a criança de dentro do livro (seus personagens infantis fictícios), Monteiro Lobato ofereceu aos seus pequenos leitores a representação de como ele as enxergava e como o ensino deveria ser organizado para que a criança realmente aprendesse. Através de sua obra infantil nós podemos compreender claramente a concepção de infância e de educação defendidas pelo escritor, e essa soma pioneira de educação e entretenimento que encontramos em suas histórias é uma característica que o consagrou como ‘o pai da literatura infantil’.
É fácil perceber que o universo lobatiano aborda de um modo todo especial e de fácil compreensão, questões relacionadas aos grandes problemas nacionais, questões culturais, políticas, econômicas, linguísticas, históricas e geográficas, apresentando noções básicas de cultura geral, de temas curriculares das ciências humanas, exatas e naturais. Através do seu imaginário, Monteiro Lobato se tornou uma espécie de guia literário para um novo conceito de infância, como um período ou uma fase de descoberta e de percepção do mundo por parte da criança.
No livro Serões de Dona Benta (1937), por exemplo, o Sítio do Pica-Pau Amarelo é transformado em um laboratório, e os alunos (as crianças), com Dona Benta como professora, fazem experiências descobrindo curiosidades das ciências naturais, como a física, a química e a astronomia. Dona Benta aborda os conteúdos científicos de um modo especial, de fácil entendimento, fazendo a mediação entre quem aprende e o conteúdo a ser compreendido, conteúdo este que são associados ao cotidiano e relacionados ao dia a dia das crianças e ao que elas podem observar. Isso se repete em outras obras do autor, em especial nas publicadas na década de 1930 e na primeira metade dos anos 1940, como Viagem ao céu (1932), Emília no País da Gramática (1934), Aritmética da Emília (1935), História do Mundo para Crianças (1933), Geografia de Dona Benta (1935), O Poço do Visconde (1937), História das Invenções (1935), A reforma da natureza (1941), O espanto das gentes (1941), A chave do tamanho (1942), Dom Quixote das crianças (1936), Histórias de tia Nastácia (1937), O Minotauro (1939), Os doze trabalhos de Hércules (1944) e Memórias da Emília (1936).
Em todas essas obras o escritor constrói situações de aprendizado que exemplificam perfeitamente as práticas idealizadas por Anísio Teixeira e os próprios personagens do Sítio reproduzem na prática toda a curiosidade e o interesse em conhecer, em descobrir e entender, sentimentos que certamente também são despertados nos pequenos leitores de Lobato. Este deve ser o papel da escola e a leitura, mesmo em tempos tão tecnológicos, continua sendo a mais poderosa ferramenta de transformação social. Como já alertava Monteiro Lobato em sua época: “Quem mal lê, mal ouve, mal fala, mal vê”. E o alerta segue ainda totalmente atual.
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REFERÊNCIAS:
https://www.educabrasil.com.br/escola-nova/ http://ameninacentenaria.bbm.usp.br/index.php/lobato-e-os-educadores/ https://seer.pucgoias.edu.br/index.php/educativa/article/view/6973/4922 https://educador.brasilescola.uol.com.br/gestao-educacional/escola-nova.htm
http://educa.fcc.org.br/pdf/ctp/v17n1/1984-7114-ctp-17-01-00094.pdf
https://abralic.org.br/eventos/cong2011/AnaisOnline/resumos/TC0850-1.pdf
** VIo Colóquio Internacional – Educação e Contemporaneidade – “Memórias Narrativas de um educador sertanejo: A correspondência entre Anísio Teixeira e Monteiro Lobato”, da pesquisadora Luciete de Cássia Souza Lima Bastos
“..E agora uma notícia que entristece a todos: Acaba de falecer o grande escritor patrício Monteiro Lobato!”
Assim, o Repórter Esso, programa noticioso que revolucionou a história do radiojornalismo brasileiro, comunicava à todos, na voz do jornalista Heron Domingues, a morte de José Bento Monteiro Lobato, um dos mais influentes escritores brasileiros do século XX. Autor de mais de 40 obras, considerado o pai da literatura infantil no Brasil, Monteiro Lobato, morreu vítima de um segundo acidente vascular isquêmico, às 4 horas da madrugada, do dia 4 de julho de 1948, aos 66 anos de idade. Ele morreu em casa, em um apartamento temporariamente emprestado por seu amigo e co-fundador da Editora Brasiliense, Caio Prado Jr., na rua Barão de Itapetininga 93, Centro de São Paulo, onde no térreo funcionava a histórica Livraria Brasiliense. O prédio continua lá, firme como testemunha muda de um pedaço relevante da nossa história. A morte do escritor causou forte comoção nacional, atraindo milhares de pessoas, entre ilustres desconhecidos, autoridades e famosos, ao seu velório na Biblioteca Municipal de São Paulo e ao seu sepultamento no Cemitério da Consolação, na zona sul da capital, demonstrando a importância de Lobato para o Brasil naquela época.
Um homem à frente de seu tempo, Lobato teve múltiplas facetas; foi, além de escritor, jornalista, tradutor, editor, publicitário e empresário, que se notabilizou sobre tudo, por sua luta em defesa dos interesses do Brasil e dos brasileiros nas áreas do petróleo, saneamento básico, saúde, e educação. Na literatura infantil, Monteiro Lobato se popularizou pelo conjunto educativo de sua obra formada por livros como Reinações de Narizinho (1931), Caçadas de Pedrinho (1933) e O Picapau Amarelo (1939), que constitui aproximadamente metade da sua produção literária. A outra metade é composta por contos (geralmente sobre temas brasileiros), artigos, críticas, crônicas, prefácios, cartas, um livro sobre a importância do petróleo e do ferro, e um único romance, O Presidente Negro.
Estamos completando 75 anos sem esse gênio da nossa literatura e para lembrar a sua importância para o nosso país, nós decidimos escrever este artigo, baseado em textos publicados em sua homenagem, na edição 4-5 volume II, de setembro/outubro de 1948 pela Revista Fundamentos, publicação que Lobato havia fundado alguns meses antes pela Editora Brasiliense. Na Revista, Lobato exercia a função de redator-chefe e publicou os folhetos De Quem É o Petróleo na Bahia e Georgismo e Comunismo. A publicação mantinha um “conselho de redação” formado por destacados intelectuais, como Annibal Machado, Aparício Torelli, Artur Ramos, Astrojildo Pereira, Candido Portinari, Clovis Graciano, Edson Carneiro, Galeão Coutinho, Graciliano Ramos, Vilanova Artigas, Leo Ribeiro Moraes, Mario Schemberg, Moacir Werneck de Castro, Oscar Niemeyer, Samuel Barnsley Pessoa e Sérgio Buarque de Holanda. No mês seguinte à sua morte, quem assumiu a chefia de redação foi Afonso Schmidt, e tinha como seus colaboradores mais próximos Ruy Barbosa Cardoso, José Eduardo Fernandes, Caio Prado Junior e Artur Neves. A Revista Fundamentos encerrou suas atividades em dezembro de 1955, depois de 40 edições.
UM JEITO ÚNICO DE ESCREVER QUE CONQUISTOU O BRASIL
Monteiro Lobato trabalhou pelo abrasileiramento da nossa língua e da nossa arte, escrevendo sobre os processos rotineiros do trabalho nos sítios, nas fazendas, os personagens do nosso folclore, as brincadeiras das crianças do interior, nossa fauna e flora, além de matérias até então pouco literárias como por exemplo o fisco e o imposto territorial. Foi através do caboclo doente, miserável e abandonado, que ele foi levado a estudar a situação econômica do povo brasileiro e como consequência desta preocupação, passou para a política. Iniciou a campanha pelo voto secreto no Brasil, com o objetivo de revigorar a política, estimulando a renovação dos quadros políticos nas Câmaras. Do voto secreto passou para a defesa do nosso subsolo e da nossa independência energética, tema que muitos brasileiros sequer tinham percebido sua importância até que publicou os livros Escândalo do petróleo e ferro e O Poço do Visconde.
Como escritor, a partir dos artigos Velha Praga e Urupês, Lobato passa de figura conhecida localmente para conhecida nacionalmente e realiza uma transição estilística em seu modo de escrever, inaugurando um novo momento na literatura brasileira, onde o romantismo habitual, da época, é substituído por textos mais realistas e contestadores de assuntos nacionais. Sua obra passa a ser, em todos os setores, uma obra de denúncia implacável e sistemática contra a desonestidade política, o estado de abandono e a pobreza da população do interior do país, a sabotagem das nossas riquezas em favor do imperialismo e o próprio governo do Brasil como um todo.
Se não conseguiu provocar uma grande revolução social através de seus livros, os fatos mostram que Lobato foi o grande responsável pela maior revolução editorial e literária vivida pelo pelo Brasil ao longo de sua história.
O EDITOR QUE REVOLUCIONOU O MERCADO DE LIVROS NO BRASIL
Lobato surgiu como escritor de sucesso num tempo em que não era fácil viver de livros no Brasil, porque haviam apenas duas ou três grandes editoras por aqui, que se dedicavam quase que exclusivamente a publicações didáticas. Além disso, o livro era considerado um artigo de luxo, por ser caro e difícil de ser encontrado. As poucas publicações que haviam, eram voltadas para a sociedade aristocrática, que possuía estudo, deixando de lado a grande maioria dos brasileiros, formada por analfabetos ou por pessoas de baixíssima escolaridade. Esse era claramente um dos grande obstáculo a ser enfrentado no desafio de aumentar o número de leitores, para assim destravar o mercado editorial.
Para se ter uma ideia, os maiores livros da nossa literatura não conseguiam garantir aos seus autores, o suficiente para que conseguissem sobreviver, mal dando para pagar as despesas de impressão de suas obras. Definitivamente, ser escritor não era de forma alguma um bom negócio. As edições eram pequenas, processo de distribuição de livros era incipiente, e quando um livro conseguia vender toda uma edição, era raro o caso em que conseguia editar uma segunda edição. O pensamento na época era: “para que reimprimir mais se quem desejava (e sabia) ler, já tinha lido?”
Foi assim que Monteiro Lobato teve que, além de escrever, se tornar editor. Nessa função ele democratizou o papel impresso no Brasil, espalhando livros por cerca de 8 milhões de quilômetros quadrados do território nacional, mesmo em um país que não sabia ler!
A partir da compra da Revista do Brasil, em 1918, Lobato dá início a uma série de inovações no mercado editorial nacional. Ele desenvolve uma seção editorial que revolucionou a produção de livros no Brasil, passando a editar autores novos e consagrados. Um inegável ativista da ideia de “dar livros ao Brasil”, Lobato foi levado por sua veia empreendedora, a transformar a Revista do Brasil, que na época reunia os principais escritores paulistas, em um núcleo inicial para uma grande editora, mudando definitivamente o negócio de livros no país. Ele se associou a Octalles Marcondes Ferreira, um jovem de apenas 18 anos de idade à época, para fundar a sua primeira editora, a Monteiro Lobato & Cia., um sucesso absoluto que logo foi transformada em uma sociedade anônima, com oficinas enormes. Lobato introduziu em São Paulo os primeiros monotipos, publicou centenas de obras e expandiu a venda de livros para mais de 1.200 localidades no Brasil. O número de publicações e de vendagem superou as expectativas do próprio Lobato, que para enfrentar o problema da escassez de livrarias, criou uma rede própria de distribuição, expandindo, apesar de toda a precariedade do transporte na época, os locais de venda de livros para todo o país, através de pontos de vendas por consignação.
O PAI DA LITERATURA INFANTIL NO BRASIL
Não podemos deixar de ressaltar também, a importância de Monteiro Lobato na literatura infantil, afinal antes dele, os livros voltados para esse público, praticamente não existiam, eram muito caros, escritos, na maioria das vezes, em Português de Portugal e praticamente sem ilustrações, nem mesmo em preto e branco. Em outra atitude pioneira, Lobato revolucionou o modo de escrever para crianças, se utilizando o nosso Português, e simplificando os termos, pode se dizer que utilizou uma linguagem muito mais acessível, em publicações repletas de figuras, ilustrações coloridas e muita fantasia. Mexendo no imaginário infantil, Lobato conseguiu falar aos mais jovens, sobre assuntos tão complexos e antes interessantes apenas aos adultos, como petróleo, ferro, saneamento básico, verminoses e novos processos de trabalho agrícola, por exemplo. As histórias de Monteiro Lobato ensinam sobre história, física, geografia, matemática e tantos outros temas chatos para quem queria apenas brincar e se divertir. Ele entendeu que o ato de educar, de despertar o interesse pela leitura, estava justamente aí: em saber como se conectar com a criança através do modo e através do mundo dela. Estava criado um novo método educacional no Brasil.
TRADUÇÕES QUE CONECTARAM O LEITOR BRASILEIRO COM O MUNDO
Lobato não apenas se destacou escrevendo livros para crianças e adultos, mas também teve um papel relevante na tradução de obras estrangeiras, que foram essenciais para a formação do leitor brasileiro. Responsável por lançar vários autores estrangeiros aqui no Brasil, suas traduções foram da História da Filosofia, de Will Durand, e Memórias, de André Maurois, a Minha vida e minha obra, de Henry Ford, e Por quem os sinos dobram, de Ernest Hemingway passando por O Homem Invisível de H.G.Wells e 1984 de George Orwell. Crepúsculo dos Ídolos e Anticristo, de Friedrich Nietzche, ainda em 1906, Robinson Crusoé, Mowgli, o menino lobo; Aventuras de Tom Sawyer; Pollyana; Moby Dick; Tarzan e Homem Invisível, são alguns títulos que ilustram a importância dessa atividade de tradução e adaptação feitas por Lobato, por o desenvolvimento literário do nosso país. É importante ressaltar, que Lobato não apenas fazia as traduções para a língua portuguesa, como também se preocupava e deixar os textos mais claros e fáceis de ler, num processo chamado de ordenação literária.
LOBATO DO BRASIL, PELO BRASIL E PARA OS BRASILEIROS
De acordo com o historiador e sociólogo Caio Prado Júnior, o escritor foi tocado pelo espetáculo da grandeza estadunidense que ele presenciou no tempo que passou nos Estados Unidos, onde trabalhou como adido comercial do governo brasileiro de Washington Luis. Lobato passou então a sonhar em ver o nosso país seguindo pelo mesmo caminho. Para realizar esse sonho, ele então não só passou a estudar o Brasil, como também passou a propor medidas para promover o desenvolvimento nacional, se tornando uma espécie de ‘capitão de indústria’. O escritor consultou técnicos, convocou engenheiros, reuniu capitais e se lançou em um dos seus mais audaciosos projetos: descobrir petróleo no território brasileiro. Lobato não se limitou em somente idealizar o assunto, foi além da teoria, arregaçou literalmente as mangas e agiu com o objetivo de ajudar a melhorar a vida dos brasileiros, tentando transformar seu sonho do petróleo em um grande negócio.
A longa história de sua luta pelo petróleo nacional está contada em seu livro O Escândalo do Petróleo, a mais terrível acusação até hoje escrita contra o imperialismo e seus agentes incrustados no governo federal da época. Nessa publicação, ele denunciou com provas documentais, o monopólio das nossas terras petrolíferas e o vasto plano para entregar o nosso petróleo à exploração de empresas estrangeiras. Com sua inteligência e combatividade, ele conseguiu transformar a luta em defesa de um empreendimento capitalista, num movimento de extensão nacional, que desempenhou no seu tempo, juntamente com a campanha da Aliança Nacional Libertadora, liderada por Luiz Carlos Prestes, uma indiscutível função educativa e politizadora junto às mais amplas camadas da nossa sociedade. Podemos dizer que foi através dos comícios da A.N.L., dos panfletos e da pregação de Lobato em defesa do petróleo nacional que o povo brasileiro passou a conhecer e entender os problemas básicos da nossa economia, bem como a necessidade de se manter uma posição de luta firme e corajosa contra as ameaças imperialistas.
Foram dez anos de sua vida dedicados à campanha de nacionalização do petróleo brasileiro. Mesmo doente, costumava atravessar noites escrevendo cartas, artigos e prospectos de divulgação e propaganda, além de viajar por todo o Brasil, em incansáveis encontros para divulgar suas ideias sobre o assunto e defender a nossa libertação econômica. Lobato sacrificou saúde, dinheiro e sua família durante o que ele mesmo chamou de sua “febre petrolífera”, que ao invés de leva-lo ao delírio, deu a ele a lucidez necessária para compreender as linhas mestras da revolução agrária e anti-imperialista do Brasil daquela época. Seu entusiasmo pelo petróleo era tão grande que ele chegou a estudar e aprender toda a técnica da extração do ouro negro, para assim poder acompanhar os trabalhos junto aos poços que suas companhias perfuravam.
Antes de iniciar a sua jornada em defesa do petróleo brasileiro, Lobato se tornou um dos maiores defensores do processo Smith, da redução do oxido de ferro em baixa temperatura. Esse método siderúrgico criado pelo engenheiro William H. Smith e patenteada, em 1928, pela General Reduction Corporation, em tese, reduziria o minério de ferro a ferro esponja, por meio de reações químicas, em forno vertical com temperatura inferior ao ponto de fusão do metal. Após essa redução, o ferro é magneticamente separado de outros materiais e, por fim, briquetado. O ferro esponja é considerado uma alternativa ao ferro gusa e ambos podem ser utilizados na produção de aço, no entanto, apesar de ainda hoje, muitos especialistas considerarem o uso do segundo mais vantajoso. O livro “Ferro”, de 1931, onde Monteiro Lobato reúne seus artigos publicados no jornal O Estado de São Paulo sobre este assunto foi considerado pelos técnicos como uma valiosa contribuição ao estudo do problema siderúrgico no Brasil, servindo de incentivo à formação de diversas empresas que até hoje empregam o processo preconizado pelo escritor.
A PUBLICIDADE ANTES E DEPOIS DE LOBATO
Além de um incansável propagador de ideias no sentido geral, a serviço dos homens, no campo da cultura, na defesa da terra e na independência econômica do país, Monteiro Lobato deu uma importante colaboração ao mercado de publicidade e propaganda. No âmbito comercial ele foi um técnico em anúncios e o seu primeiro grande trabalho foi com a adaptação do Jeca Tatuzinho como garoto propaganda de dois preparados farmacêuticos: o Biotônico e a Anquilostomina Fontoura. Os textos produzidos para o Jeca Tatuzinho e posteriormente para o Zé Brasil, um panfleto que entrou na história da literatura brasileira como a maior campanha publicitária do Brasil. Lobato se revelou um exímio copywriter, redigindo e revisando vários textos de toda a linha Fontoura durante vários anos. Na verdade o escritor sempre demonstrou essa sua faceta publicitária, contribuindo com ideias pioneiras na direção da Revista do Brasil, fundada por ele, e mais tarde na União Jornalística Brasileira, uma empresa que redigia e distribuía notícias para vários jornais, comprada por Lobato em 1937, para fazer a propaganda comercial da sua companhia de petróleo. Lobato não foi apenas um técnico em propaganda, mas também redigiu e revisou textos, garoto propaganda de diversos produtos e foi até dono de agência de publicidade e inegavelmente um pioneiro inovador da publicidade no Brasil. Na opinião do publicitário Pedro Neme, um dos colaboradores da Revista Fundamentos, somente depois de Monteiro Lobato é que a propaganda começou a se desenvolver no nosso país.
NÃO QUIS SER MINISTRO E QUASE VIROU DEPUTADO FEDERAL
Monteiro Lobato sempre teve uma veia política latente, claramente exposta em seus textos questionadores, críticos e reflexivos sobre temas como saúde, educação e desenvolvimento econômico. Foi nomeado adido comercial do Brasil nos Estados Unidos pelo presidente da República, Washington Luís, que foi deposto por um golpe militar em 1930. O comandante das forças político-militares, Getúlio Vargas, assumiu então a presidência do país. Nacionalista convicto, Lobato e Getúlio entraram em rota de colisão quanto a relação dos interesses energéticos do Brasil da época. Vargas ainda tentou seduzir o escritor, fazendo um convite para que ele assumisse a direção do Ministério da Propaganda em seu governo, prontamente recusado por Lobato.
Quando Vargas chegou ao poder, Monteiro Lobato já era famoso pela produção literária e pela luta para provar que o Brasil era rico em petróleo. Preso por discordar da política energética e afrontar o regime ditatorial de Vargas, Lobato ficou preso na Casa de Detenção de São Paulo, onde conheceu o sargento do Exército, José Maria Crispim, preso por ser simpatizante do Partido Comunista Brasileiro, com quem dividiu uma pequena cela. Foi nesse período que ele conheceu as ideias do PCB e se interessou ainda mais pelos assuntos que giravam sempre em torno do petróleo, da siderurgia, da reforma agrária e da democracia. Lobato lamentou não ter conhecido Crispim antes, porque já se considerava velho, doente e cansado, para assumir uma militância mais ativa.
Mesmo assim, quando deixou a prisão, se manteve próximo a Julio Prestes e membros do PCB. Em 1945 foi convidado por Prestes, que esteve em sua casa, acompanhado do poeta chileno Pablo Neruda, para ser candidato a deputado federal. O escritor aceitou o convite de imediato, mas desistiu depois, por discordar do apoio que o PCB havia dado ao governo Vargas. A explicação para esse apoio do partido a Getúlio, foi justificada pelo próprio Luís Carlos Prestes, em entrevista ao programa Roda Viva, da TV Cultura, em 1986, que via os nazistas como o grande inimigo a ser combatido naquele momento, apesar de Vargas ter sido o responsável pela deportação da ativista política Olga Benário, companheira de Prestes à época, que foi presa e morta na Alemanha.
Havia também um drama de consciência. Lobato não aceitava o carimbo de ‘comunista’, porque apesar da sua simpatia por algumas ideias defendidos pelo PCB, o escritor há anos se mantinha um admirador confesso das ideias do economista estadunidense Henry George, tendo publicado inclusive o panfleto Georgismo e Comunismo. Junte-se a isso, o fato do escritor ter sido uma pessoa de senso ético e independência de pensamento acima do normal, esses fatores sempre tornaram impossível à Lobato juntar-se a qualquer governo ou filosofia politica.
Seja como empreendedor, realizador, escritor ou pensador, Monteiro Lobato será sempre merecedor de todas as homenagens e dos inúmeros estudos sobre sua vida e sua obra. A genialidade de Lobato transcendeu a criação de personagens imaginários, trouxe à luz o verdadeiro Brasil que margeava o imaginário fantástico e envolvente do escritor. Convivendo entre o real e a fantasia, Monteiro Lobato foi em sua essência um dos mais combativos patriotas do nosso país e sem dúvida a sua morte, uma perda imensurável para a nossa própria história. Mas a sua memória continua viva, provocativa, reflexiva e inquieta, como ele próprio foi ao longo se sua existência.
Para finalizar este artigo, fazemos um agradecimento especial ao jornalista Silvio Lefevre, filho de Antonio B. Lefevre. médico que atendeu Lobato no dia de sua morte, por nos ter disponiblizado esse material, que a partir de agora estará a disposição de todos, aqui no nosso site.
Revista Fundamentos, edição 4-5 volume II, de setembro/outubro de 1948, edição em homenagem ao seu fundador, Monteiro Lobato.
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REFERÊNCIAS:
http://memoria.bn.br/pdf/102725/per102725_1948_00004-00005.pdf
Além de toda sua genialidade como escritor, do espírito combativo na defesa de suas ideias e do olhar futurista, Monteiro Lobato também foi um homem apaixonado, que encontrou o amor, conviveu com seus medos, incertezas e inseguranças, em uma época onde o romantismo era a base de qualquer relacionamento entre casais.
Sim, Lobato também amou e amou muito, por toda a sua vida!
Apesar dos relatos documentados em correspondências trocadas a partir do seu encontro com Purezinha, aquela que viria ser o grande amor de sua vida, esposa e mãe de seus filhos, não encontramos provas documentais sobre a vida íntima do escritor antes desse acontecimento, para saber por exemplo, se Lobato foi muito namorador durante a adolescência e juventude. O que encontramos foram algumas pinceladas que indicam que ele teve sim algumas paqueras passageiras em Taubaté e em Campos do Jordão. Mas nada que se compare ao relacionamento com a jovem Purezinha, esse sim com fartos relatos documentados nas cartas trocadas entre eles, no período de 1906 a 1908, cuidadosamente colecionadas por ela.
Eles se conheceram por acaso, na casa do advogado e professor Antonio Quirino Souza, ou Dr. Quirino, avô de Purezinha, onde Lobato ia habitualmente para jogar xadrez. Dr. Quirino, inclusive, havia sido professor do escritor no Colégio São João Evangelista, naquela cidade, em 1883, quando Lobato tinha 11 anos de idade.
Purezinha, modo carinhoso como era tratada por familiares, amigos e ela própria costumava assinar, na verdade se chamava Maria da Pureza Gouvea Natividade e era prima distante de Lobato. O parentesco distante entre eles, está confirmado no caderno de anotações de Purezinha, em uma genealogia da família registrada por ela. Os dois têm tataravôs em comum: o Sargento Mór Manuel de Moura Fialho e Anna Marcondes de Oliveira, casados em 1827.
Na época em que se conheceram ela era professora no Colégio de Miss Stafford, na cidade de São Paulo e costumava passar as férias na casa do avô, em Taubaté. Ela era uma mulher muito bonita de acordo com os critérios de beleza da época, “branca como pétala de magnólia”, e que “costumava ser cortejada pelos rapazes da cidade”, conforme descreveu o próprio escritor na correspondência com seu amigo Godofredo Rangel, de março de 1906. A partir desse encontro, na casa do Dr. Quirino, Lobato passou a cortejá-la assiduamente. Inspirado por essa paixão arrebatadora, escreveu versos românticos, alguns dos quais publicados no jornal O Minarete. Entretanto, haviam algumas diferenças entre o jovem casal, como o fato de Monteiro Lobato ser neto do Visconde de Tremembé, um fazendeiro aristocrata, proprietário de diversas fazendas, e a família de Purezinha ser mais liberal e ter entre seus membros um dos principais abolicionistas do país, Antonio Bento, seu tio. A princípio, o próprio avô do escritor foi contra esse relacionamento, porque a família de Purezinha era vista como progressista em suas ideias, enquanto a sua, era mais conservadora. Apesar das diferenças e mesmo contra a vontade do Visconde, Lobato e Purezinha continuaram a se relacionar, até que no dia 12 de março de 1906, ele a pede em noivado e recebe o sim três dias depois.
Como Purezinha mantinha o trabalho de professora na capital paulista, antes do casamento, eles tiveram que se relacionar através de cartas e essa correspondência está reunida no livro “Cartas de Amor”, publicado em 1969, que reúne as cartas escritas à noiva entre 1906 a 1908. Lobato estava perdidamente apaixonado. E esse Lobato apaixonado era inseguro, reclamava de tudo! Reclamava por ela não lhe escrever diariamente, por escrever cartas curtas, se queixava por ela não ser efusiva em expressar seu sentimento de amor nas cartas e por aí vai. Esse comportamento apenas retrata uma época marcada pelo romantismo. Em uma dessas cartas, escrita dias após o noivado, o escritor reclama da demora da noiva em responder suas cartas:
“Esperei hoje a resposta da minha de sábado, mas o carteiro chegou de mãos vazias, enchendo-me de tristeza. Vi que de tua parte nenhuma pressa existe em proporcionar-me momentos felizes que serão os em que te ler. Paciência! Esperemo-la para amanhã.” (Carta de 24 set. 1906)
No dia seguinte Lobato escreve uma outra carta, onde mais uma vez reclama da demora da noiva em responder, demonstrando sua irritação, insegurança e até mesmo imaturidade em lidar com a situação, típicas de um jovem perdidamente apaixonado:
“Ainda hoje o carteiro não me trouxe coisa nenhuma. É, pois, certo que não queres corresponder comigo. Paciência! Seja feita a tua vontade. Nunca mais incomodar-te-ei com minhas cartas. Está ficará sendo a última. […]
P.S. Deseja a devolução dos cartões que possuo em meu poder?”
Impaciente com a demora nas respostas às suas cartas, nesse mesmo dia o escritor também envia um cartão-postal escrito em código, endereçado a Purezinha e à sua irmã Noêmia, perguntando se alguém estaria zangado com ele.
Infelizmente não foi localizada a carta onde a noiva responde ao impaciente noivo, no dia 28 de setembro, conforme menciona este trecho de uma outra carta escrita por Lobato em 30 de setembro de 1906:
“Meu amorzinho.
Encheu-me de remorso a tua de 28, mas um consolo resta e é que se te causei alguma tristeza, foi-lhe causa o muito, o grande amor que te tenho. Não pude suportar a ideia de que demorasses tanto em responder à minha primeira carta de noivo. // Entrei a arquitetar mil suposições e, cheio de dor e tristeza, deixei escapar palavras que te magoaram. Mas espero da bondade de teu coração que já nenhum ressentimento exista nele contra mim. Amar é perdoar, sempre e constantemente – se é que me amas, perdoado estou de há muito tempo. Se eu te tivesse amor menos intenso, é claro que aquela demora nenhuma dor me causaria; mas não sendo assim, é mais uma prova te dei do que vivo a afirmar.”
Nessa mesma correspondência, Lobato se desculpa com Purezinha, reconhecendo a sua insegurança no relacionamento, mas também reclama do “excesso de cerimônia” usado por ela ao escrever ao noivo:
“[…] Não tens nada dentro de ti, Purezinha? Não tem uma coisa a que chamam alma e donde saem as palavras, as ideias, os pensamentos e os assuntos? És tão parcimoniosa no escrever … dizes com tanta cerimônia as coisas… Por que não me escreves atabalhoadamente, borrando, riscando o papel, sem ordem, sem estilo, sem correção, sem nada desses estorvos gramaticais? Só assim se pode bem exprimir um sentimento. […]”
Naquele ano de 1906, completamente apaixonado, Lobato pede a mão de Purezinha em casamento, o que só não se concretizou porque ambos ponderaram que naquele momento ele era apenas um Bacharel em Direito, sem um emprego que lhe desse condições de sustentar a própria família. A noiva, por outro lado, já era professora desde 1901, quando se formara na escola complementar. Ele então pede ajuda ao avô, que um ano depois consegue a nomeação de Lobato como promotor público na comarca de Areias, dando assim condições ao neto de se preparar para o casório.
Quase dois anos de noivado se passaram e apesar de todo romantismo estampado nas inúmeras cartas trocadas entre eles, criou-se um certo incômodo por parte da noiva em relação ao futuro daquele relacionamento. Sim, a insegurança não era apenas de Lobato, mas também da jovem noiva, conforme ele próprio relata em carta escrita ao pai de Purezinha, datada de 26 de janeiro de 1908. Ele e a noiva já tinham conversado sobre o assunto e ela tinha reclamado do sentimento de incerteza em relação ao compromisso entre eles, afinal agora ambos trabalhavam e não havia motivo para que o casamento não tivesse ainda acontecido. Percebendo essa insegurança, Lobato então decide apressar a data do casamento, que acaba acontecendo, enfim, no dia 28 de março de 1908, na cidade de São Paulo. Lobato tinha 26 anos, Purezinha 23.
Tinham dúvida se passariam a lua de mel em Taubaté, no Rio de Janeiro ou na cidade de Santos. Por fim, decidiram pelo litoral paulista, onde ficaram na praia do José Menino. Em uma carta para o velho amigo Godofredo Rangel, publicada no livro A Barca de Gleyre, Lobato narra a sua aventura e desventura nas areias da praia de Santos:
“…os dias anteriores ao casamento passei-os aqui em S.Paulo, atrapalhado com as mil coisas concernentes. Depois de casado fui luademelar à beira do oceano, em Santos, Zé Menino. Mas lá, um belo dia, às 3 da tarde, quando tomávamos banho e brincávamos nas ondas como dois peixes nupciais, eis que pisamos num molusco venenosíssimo. Senti aquela moleza. Logo depois sobreveio um queimor na pele da sola, e veio uma comichão continua e por fim rebentou a infecção – purulenta e dolorosa. E isso em nossos quatro pés – os dois meus e os dois de Purezinha.”
Nessa mesma carta, o escritor conta ao amigo que ao retornarem da lua de mel ele e Purezinha tiveram que ficar um mês de cama “com os pés em posição horizontal, incapazes de um passo, os dois a gemerem e maldizerem o mar com todos os seus moluscos”. Após o período de recuperação, o casal retorna à cidade de Areias, onde Lobato reassume o posto de promotor e passa a morar com a esposa em um sobrado próximo à Matriz Sant’Ana.
Lobato e Purezinha tiveram 4 filhos: Martha, Edgar, Guilherme e Ruth. Purezinha deixou de lecionar para se tornar uma mãe e esposa dedicada em cuidar da casa, da educação dos filhos e ajudar Lobato a concretizar seus sonhos.
Por conta da inquietude de Lobato, eles viviam se mudando. De Areias eles foram para a fazenda São José do Buquira, herdada após a morte do Visconde e 1911 e depois de vender a fazenda se mudaram para São Paulo em 1917. Ela tinha por hábito ler histórias para os filhos e foi justamente observando essas experiências de leitura, que Monteiro Lobato se motivou para escrever um mundo de livros para meninos e meninas.
Lobato sempre exaltava a presença de sua Purezinha como uma mulher inteligente, que lia seus textos, o ajudava em suas traduções e palpitava sobre o que ele escrevia, uma invejável companheira que cuidava do bem da família enquanto ele se dedicava em tocar seus projetos profissionais. Ele escreveu, por exemplo, que a opinião de Purezinha era a única na qual ele confiava. Durante sua vida, ela foi sua companheira integral, que “sofria” com a energia criatividade constante do escritor. Uma mulher forte, que sofreu com a morte dos filhos Guilherme e Edgard, mas precisou se manter firme como o pilar mestre da família constituída ao lado de Lobato.
A história de amor de Monteiro Lobato e Purezinha, foi sendo escrita aos poucos, ao longo dos quarenta anos de casamento (1908 – 1948). Ela foi sua companheira de todas as horas, para todos os lugares, sempre apoiando e participando de todos os projetos do escritor. História que chegou ao fim no dia 4 de julho de 1948, quando aos 66 anos, Lobato morreu enquanto dormia em decorrência de um espasmo cerebral.
Purezinha permaneceu no seu luto, cuidando do legado do escritor, até falecer, aos 73 anos de idade, vítima de câncer no cérebro, no dia 27 de abril de 1959. Ela foi enterrada ao lado do marido no Cemitério da Consolação em São Paulo.
O fim dessa história talvez não tenha a mesma magia e encantamento daquelas que Lobato escreveu ao longo de sua vida, mas certamente foi a que mais o desafiou e extraiu dele o seu melhor.
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REFERÊNCIAS:
#Livro: “Furacão na Butocúndia”
https://docplayer.com.br/12438922-Monteiro-lobato-vida-obra-2.html
Se você é leitor da obra de Monteiro Lobato, certamente já leu alguns de seus livros onde havia uma quantidade expressiva de referências à Grécia Antiga como em O Pica-Pau Amarelo, ou até aventuras inteiras que se passam na Grécia, como O Minotauro, Os Doze Trabalhos de Hércules e História do Mundo para Crianças. Mas de onde vem essa admiração pela cultura Helênica nas obras de Lobato? O que o escritor leu e de que maneira essas leituras influenciaram suas obras? Porque Lobato colocou tantas vezes em seus livros essa conexão do universo lobatiano com a mitologia Grega?
A correspondência entre Lobato e seu amigo e também escritor Godofredo Rangel, ao longo de quarenta anos, reunida no livro intitulado A Barca de Gleyre (Companhia Editora Nacional,1944), nos revela que Lobato lia traduções de autores como Homero, Horácio, Hesíodo, Aristófanes, Ésquilo, Eurípides, Platão, Aristóteles e Heródoto e que o autor expressava grande admiração não apenas pela literatura, mas também pela cultura grega em especial. Através de suas histórias, ele expressou sua admiração sobre os antigos gregos, baseadas na ideologia do chamado “Milagre Grego”, que enxergava as grandes realizações da Grécia Antiga como um evento espontâneo, inédito e único, resultado de um povo especial; tese, esta, prevalente nos meios acadêmicos e letrados do final do século XIX até meados do século XX, mas que hoje foi desbancada pela historiografia. Lobato leu e foi influenciado por autores onde essa concepção pode ser encontrada, como as obras do poeta e intelectual francês Leconte de Lisle; do escritor, filósofo, teólogo, filólogo e historiador francês Ernest Renan; do escritor francês Anatole France; além de alguns livros do filósofo, historiador e escritor estadunidense William James Durant, que Lobato inclusive, revisou a tradução e publicou pela Companhia Editora Nacional, da qual era proprietário na época.
Lobato também era seguidor do pensamento positivista – corrente teórica criada pelo filósofo francês Auguste Comte que defendia a ideia de que o conhecimento científico seria a única forma de conhecimento verdadeiro e que tem a Matemática, a Física, a Astronomia, a Química, a Biologia e também a Sociologia como modelos científicos de conhecimento e progresso. Essa visão positivista da importância da ciência e da educação influenciou Lobato e ia de encontro ao seu desejo de transformar o Brasil em país próspero, com um povo letrado. Ele acreditava no poder de transformação do ser humano pela leitura e pela educação e simultaneamente idealista e realista, enxergou no mercado literário, um grande potencial para a transformação positiva do nosso país. Afinal “um país se constrói com homens e livros”.
A primeira menção de Lobato sobre a Grécia Antiga, pode ser encontrada no livro História do Mundo para as Crianças, de 1933, uma adaptação da Child’s History of the World, de V. M. Hillyer, que marcou a primeira tentativa de Lobato na publicação de livros paradidáticos, com o objetivo de tornar os conteúdos escolares mais agradáveis e divertidos. Neste livro Dona Benta conta de maneira cronológica desde o surgimento do sistema solar (um espirro), do nosso planeta e da vida na Terra, a evolução do homem, a Idade da Pedra, as primeiras civilizações e assim por diante, passando pelos Grécia Antiga, Tróia, os Romanos até chegar aos últimos dias da Segunda Guerra Mundial. Esse é um dos livros infantis mais longos de Lobato e também um dos mais perseguidos pelo Estado Novo de Getúlio Vargas e pela Igreja Católica, sendo denunciado pelo Padre Sales Brasil, na época, como “comunismo para crianças”.
Poucos anos depois, em 1939, no livro O Pica-Pau Amarelo, os personagens do “Mundo da Fábula”, entediados com a monótona rotina dos antigos livros onde viviam, decidem se mudar para o sítio de Dona Benta, um lugar incrível, na esperança de terem maior liberdade para viverem novas histórias e aventuras. Lobato mistura, neste livro, personagens da nossa mitologia com os personagens do sítio e os da mitologia grega novamente. Vemos personagens como a Medusa, o valente Perseu, o Rei Midas, os centauros, os faunos, as sereias, as ninfas (figuras mitológicas, que representam elementos da natureza e são responsáveis por levar alegria e felicidade às pessoas), as náiades (espécie de ninfas das águas doces, que habitam rios e lagos), além do herói Belerofonte, Pégaso (filho da Medusa com Poseidon), a Quimera (figura mística caracterizada por uma aparência híbrida de dois ou mais animais, que tem a capacidade de lançar fogo pelas narinas), entre outros personagens participando das aventuras no sitio. A convivência entre personagens de origens tão diferentes acaba criando conflitos e situações inusitadas e durante a narrativa, acontece um acidente com o rompimento da barragem que sustentava o mar da história de Peter Pan, matando o marido de Branca de Neve. Para contornar a situação, a turminha do Sítio articula um novo casamento para Branca de Neve com o Príncipe Codadad, das Mil e uma noites. A fim de fazer com que os dois se apaixonem, Emília faz uso de algumas flechas do Cupido. Tudo parece caminhar para um final feliz, até que durante a festa de casamento, onde os mitos gregos são a maioria dos convidados, acontece uma invasão de monstros, identificados apenas como “monstros fabulosos”, de origem grega, Tia Nastácia acaba raptada pelo Minotauro! Essa é a primeira obra de Monteiro Lobato, onde se nota a forte presença de mitos gregos, dentro da própria história, antecipando os temas das próximas aventuras, já que o seu desfecho fornece o gancho e o pretexto para as viagens do grupo do Sítio à Grécia Antiga que viriam a seguir.
Em O Minotauro, publicado no mesmo ano de 1939, temos a continuação da aventura iniciada em O Picapau Amarelo, onde Tia Nastácia desaparece durante o casamento da Branca de Neve. Agora, Dona Benta, Pedrinho, Emília, Narizinho e Visconde vão procurar Tia Nastácia na Grécia Antiga. O texto, quase todo em formato de diálogo, tem Dona Benta trazendo informações sobre a história da Grécia e as crianças interagindo com o que a avó conta, acrescentando outras informações e comparando a realidade do passado com a realidade de 1930, época que o livro foi escrito. A caminho da Grécia, os personagens discutem a influência Helênica na nossa língua, dão exemplos de retórica e falam da influência grega em nossa arquitetura. Quando chegam na Grécia, eles discutem as roupas, comparando com o que se vestia no final da década de 1930, além de traçar outros paralelos ligados à arte e a cultura das duas épocas. Dona Benta, como uma esfuziante viajante do tempo, comete o erro de revelar a Péricles (célebre governante de Atenas) e a Fídias (um dos principais escultores gregos), sobre o futuro. Pedrinho, Emília e Narizinho não ficam atrás, contam a Fídias sobre cinema, cigarros, carros e a fórmula da água, deixando-o atordoado, sem entender absolutamente nada. Por sorte, saber sobre o futuro, nessa história, não gera consequências porque este não era o propósito, mas certamente pensar sobre esse impacto seria algo curioso para muitos de nós hoje em dia. Voltando à história, Dona Benta e Narizinho decidem ficar na Grécia governada por Péricles, onde participam de um jantar em seu palácio e conhecem várias celebridades históricas, entre elas o filósofo ateniense, Sócrates. Já Emília, Pedrinho e Visconde vão em busca de Tia Nastácia, chegando então na Idade Heróica da Grécia, repleta de mitologia, a partir do capítulo 10. Os personagens de Lobato vão ao Olimpo em busca de Hercules e depois de presenciarem alguns de seus feitos, se deparam com várias figuras mitológicas, até encontrarem Tia Nastácia no labirinto do Minotauro. Para evitar um spoiler para quem ainda não leu este livro, fica aqui um convite para que leiam, a fim de saber por exemplo, como Tia Nastácia é salva e como os personagens de Lobato saem do labirinto, e voltam para casa.
Em Os Doze Trabalhos de Hércules, de 1944, Monteiro Lobato faz um novo e fascinante mergulho na mitologia grega sob o olhar brasileiríssimo da turminha do Sítio do Pica-Pau Amarelo, resultando em um dos clássicos da literatura infantojuvenil brasileira, que há quase oitenta anos segue encantando gerações de crianças. Nessa história, Pedrinho, Emília e o Visconde de Sabugosa recorrem ao pó de pirlimpimpim para recuar mais de 2 mil anos no tempo, a fim de ajudar Hércules na primeira de suas doze missões impossíveis. Uma a uma, as tarefas do semideus vão sendo cumpridas graças ao apoio intelectual dos personagens lobatianos, uma vez que o herói grego tem força e valentia, mas carece de certa esperteza. Além de ajudar o herói a superar todos os desafios, os personagens do Sítio fazem um passeio pelos principais e mais belos trechos da mitologia grega, utilizando uma linguagem simples e apropriada para crianças, apresentando esse universo com uma riqueza de detalhes raramente encontrada em outros livros, mesmo para adultos. Para essa história, Lobato criou dois personagens: Meioameio, uma espécie de ‘potrinho’ de centauro que se torna amigo de Pedrinho e Minervino, mensageiro de Palas Atena (deusa da sabedoria, da guerra e da justiça, protetora da cidade de Atenas), que volta e meia surge para auxiliar os protagonistas ou para discutir sobe mitologia com o Visconde de Sabugosa. Curioso é que no final do segundo volume da história, Emília pergunta o verdadeiro nome de Minervino, que afirma ser Belerofonte, um herói da mitologia grega, considerado um semideus, por ser filho de Poseidon (um dos deuses gregos) com uma humana.
É importante notar que Lobato não fez apenas uma tradução ou mera adaptação das histórias helênicas. Na verdade ele cria uma obra nova, adicionando os personagens do Sitio alem de outros novos, mantendo os elementos mais importantes da narrativa mítica greco-romana, mas incluindo aventuras e acontecimentos completamente distintos, introduzindo elementos engraçados e adequando os fatos narrados às nossas próprias características através do seu imaginário. De extrema importância é notar o convicção de Lobato de que é através do aprendizado, da educação, da ética que podemos vencer os obstáculos. E, com a ajuda da turma do Sitio, Lobato nos dá o novo herói, Lobatiano que é forte mas também sente compaixão, tem ética e aprende o que é certo e errado. O novo herói que tem força e inteligência. Ele que sempre acreditou no poder transformador dos livros, entendeu que os mitos gregos sobreviveram à transposição da oralidade para a escrita porque trabalhavam com imagens e situações presentes no imaginário de todos nós. E o resultado é simples: crianças e adultos, quem não gosta ler ou ouvir uma boa história?
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REFERÊNCIAS:
https://revistas.ufpr.br/letras/article/view/14995
https://dspace.mackenzie.br/handle/10899/25446
https://periodicos.ufms.br/index.php/ENAPHEM/article/download/15092/10338/
https://www.researchgate.net/publication/287730299_Monteiro_Lobato_e_a_Mitologia_Grega
https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/31/31131/tde-20072022-151646/pt-br.php
https://www.blogdaletrinhas.com.br/conteudos/visualizar/A-Grecia-pelo-olhar-de-Monteiro-Lobato
https://periodicos.ufmg.br/index.php/aletria/article/view/18373/15162
https://revistas.ufpr.br/letras/article/viewFile/14995/13469
https://repositorio.ufmg.br/bitstream/1843/ECAP-7DXJL5/1/disserta__o___vitor_amaro_lacerda.pdf